Não tem faltado material à cobertura jornalística da 20ª edição do Campeonato Mundial de Futebol, da Fifa, no Brasil – os prognósticos catastróficos não se confirmaram, e o espetáculo com a bola em campo rendeu até os mais empedernidos críticos (afinal, torcemos pelo Brasil e pela nossa seleção), contaminando a (quase) todos com o clima de oba-oba, temos Copa, somos hospitaleiros, sabemos da festa e da dor. E queremos ser uma nação, dentro e fora de campo (como num anúncio publicitário).
A multiplicidade de recursos tecnológicos, por sua vez, possibilita outro espetáculo, ou antes, engrandece a visibilidade espetacular do evento – para o bem e para o mal (de alguns, como na indefectível mordida de Suárez) – embora nada escape do controle programático da Fifa. Daí, talvez, a exemplaridade na punição do hannibal uruguaio, ainda que não use do mesmo rigor para investigar ou coibir os próprios abusos e casos de corrupção interna, com aparente lastro em confederações et caterva. Farto material jornalístico, portanto, como no caso noticiado pela Folha de S.Paulo (http://folha.com/no1480385) do desmantelamento, na terça-feira (1/7), de uma quadrilha de cambistas que comercializavam ingressos para os jogos da Copa – cabe à imprensa mergulhar mais fundo no assunto.
Mas a impressão que se tem em algumas reportagens ou meios de comunicação é a de um cuidado no tratamento dos fatos, quem sabe, para que não renda dividendos políticos ao governo federal, tão criticado até às vésperas da Copa. Talvez a estratégia catastrofista adotada até então não tenha surtido os efeitos desejados, considerando a reversão das expectativas negativas com o inesperado sucesso da competição, registrado no consequente crescimento da avaliação positiva do país e da intenção de voto em Dilma Rousseff (PT), conforme dados da última pesquisa Datafolha.
Uma (suposta) elite
De novo em campo política e futebol, pauta que pode e certamente será mais explorada, não bastando, todavia, análises na base de partidarismos raivosos ou enfoques reducionistas, calcados no contraponto alienante do pão e circo ou coisa parecida, pois que exigem reflexões que considerem as complexidades de nossa realidade social e política, também com coragem para tocar em pontos mais espinhosos, como na Lei da Copa, pouco debatida. Caso contrário, há sempre o risco de fragilizar ainda mais a credibilidade dos meios de comunicação, se bem que alguns parecem não se importar com isso, incapazes de um jornalismo que reflita o mais acertadamente possível a realidade cotidiana do país, e não tão somente a própria percepção de tal realidade, eivada ideologicamente de interesses particulares.
De qualquer forma é possível desenhar um panorama quase sociológico da Copa, do comportamento da torcida, dos reflexos disso, enfim, da própria cobertura jornalística – e não deixa de ser irônica, por exemplo, a abertura oficial no evento na TV, se bem que acertada social e semioticamente, uma vez que a animação reflete os estereótipos com que somos vistos (ou até nos vemos), além de demonstrar a fratura social entre os que podem pagar/participar desse momento esportivo histórico e o do povo alegre, condenado a assistir de longe (de preferência pelo detentor oficial das transmissões) ao espocar dos fogos de artifício nas tais arenas. Fratura que se expõe sintomaticamente, como no rastilho do xingamento à presidente, resvalando pelo ódio de classes, insuflado tanto por meios de comunicação menos responsáveis quanto por partidos, de um ou outro lado nesse jogo de poder, a fim de se angariar algum lucro político, numa ética bastante maleável.
Nesse contexto, contrapõem-se uma (suposta) elite, com mais escolarização, não necessariamente mais educada socialmente ou cidadã (tampouco criativa ou acostumada a frequentar arquibancadas, senão as numeradas, pelo que se tem visto nos jogos do Brasil, plateia mais preocupada com selfies & afins), e a classe média ascendente composta pelo estrato de um amalgamado povo, com acesso precário à educação (senão tentando resgatá-la em EJAs e CEEJAs), à saúde, ao transporte público, à moradia digna, enfim, à igualdade de oportunidades numa sociedade mais justa.
Jeitinho criativo e gambiarra permanente
Como se encaixam essas peças, quase ao modo de um caleidoscópio sempre em movimento, formando novos desenhos e realidades, espelhando novos desejos e anseios, talvez diga muito mais a respeito de nós mesmos do que podemos supor – talvez nos ofereça uma espécie de chave para o entendimento do que somos e queremos ser como nação. Sob esse aspecto diferentes pontos de vista e múltiplos enfoques jornalísticos (embora também se tenha produzido muito do mesmo) podem (e devem) contribuir para uma visão mais clara, livre de partidarismos e aprofundada de nossa sociedade, a exemplo da série de matérias de Eliane Brum, na Folha, em cobertura especial para a Copa (ver links abaixo) – série que retrata um paineltocante e vivo de contrastes e consonâncias de nosso ethos social.
Talvez não seja exagerado (senão utópico) torcer para os homens públicos (diga-se, políticos) e por que não parte importante da mídia desse país também tivessem um olhar mais humanista e responsável, um olhar capaz de sair da profundidade do próprio umbigo (e dos interesses privados) para dar respostas democráticas, de competência e justiça (e prestação de serviço) social e de oportunidades a todos no desenvolvimento do país – para que não fiquemos com a inata impressão de que o jeitinho criativo tornou-se efetivamente uma permanente gambiarra, para que se possa extrair dos erros e acertos novos rumos, para que não se enraíze o sentimento de anacronismo ou deslumbramento fácil e tolo, degenerando-se em intolerância e preconceitos.
Afinal, não é de hoje a impressão de que apesar das classes dirigentes (sejam no campo esportivo ou na arena política, e da promiscuidade de interesses daí advinda) a vida segue e tem de seguir.
O brete de bois e os helicópteros zunindo
Links das matérias de Eliane Brum, na Folha de S.Paulo:
1. Folha de S.Paulo– Folha na Copa – Eliane Brum: Zona controlada – 02/07/2014
A zona mista é como um brete de bois. Para quem não está familiarizado com a terminologia rural, brete é um cercado para onde os animais são conduzidos, à força, para serem castra… – http://www1.folha.uol.com.br/es…iane-brum-zona-controlada.shtml
2. Folha de S.Paulo– Folha na Copa – Eliane Brum: o PM e o militante – 28/06/2014
Em dia de jogo Brasil x Chile, no Mineirão, em Belo Horizonte, Steevan Oliveira e Luiz Fernando Vasconcelos acordam com propósitos diferentes. Steevan vai vestir a farda de polici… – http://www1.folha.uol.com.br/es…e-brum-o-pm-e-o-militante.shtml
3. Folha de S.Paulo– Folha na Copa – Eliane Brum: Sem casa, na casa da seleção – 25/06/2014
Na arquibancada da Granja Comary havia a dor de 100 mortos e mais de 20 desaparecidos. É o que perderam as 50 crianças e 30 adultos que tiveram permissão para assistir ao treino d… – http://www1.folha.uol.com.br/es…m-casa-na-casa-da-selecao.shtml
Cada portão para impedir o acesso do povo à Granja Comary é mais difícil de passar do que o outro. Na entrada principal, são cinco barreiras. Seis, se contar a da imprensa, que… – http://www1.folha.uol.com.br/es…ara-tentar-aparecer-na-tv.shtml
A cigana Daiane Rocha sonha tanto com os gols da seleção no jogo contra Camarões quanto com a repetição de um gesto. Daiane espera que os moradores ao redor do acampamento, na… – http://www1.folha.uol.com.br/es…sto-de-torcer-pelo-brasil.shtml
6. Folha de S.Paulo– Folha na Copa – Moradores protestam no luxuoso condomínio da Granja Comary – 21/06/2014. Eliane Brum/Folhapress Antônio Fusco, 56 anos, durante 'protesto' na Granja Comary A segurança recuou a barreira para trá… – http://www1.folha.uol.com.br/es…ndominio-da-granja-comary.shtml
7. Folha de S.Paulo– Folha na Copa – Cleto Pinto é o ‘dono’do microfone até a seleção começar coletiva na Granja – 20/06/2014 – “Ichi! Ni! San! Shi! Go!”É Cleto Pinto, 60 anos. Falando um a cinco em japonês. Antes de cada entrevista coletiva na Granja Comary, em Teresópolis, ele está lá para… – http://www1.folha.uol.com.br/es…omecar-coletiva-na-granja.shtml
8. Folha de S.Paulo– Folha na Copa – Eliane Brum: A bunda do Hulk – 19/06/2014
“Hulk, deixa eu apertar a sua bunda.”Esse era o cartaz exibido – com orgulho – pela estudante Ana Caroline Côrtes, 13 anos, na entrada da Granja Comary, neste domingo… – http://www1.folha.uol.com.br/es…iane-brum-a-bunda-do-hulk.shtml
ódio”, diz Marcos Sancho, 62 anos, administrador de empresas. “Napoleão já dizia que, se não fosse a religião, os pobres tinham devorado os ricos.”Eliane- http://www1.folha.uol.com.br/es…assistiu-a-elite-desfilar.shtml
Quando pergunto a ele sobre o passado e o futuro, Vinicius Marcos Pinheiro Ferreira diz: “Não conto o tempo. Por que não? Não conto. Eu não conto a alegria e não… – http://www1.folha.uol.com.br/es…lta-para-escapar-da-morte.shtml
Olhando bem fundo nos olhos dela, castanho-escuros, quase pretos, não se adivinha nenhum complexo. Um psicanalista poderia perceber uns laivos de histeria na insistência de latir… – http://www1.folha.uol.com.br/es…ndo-que-a-copa-nao-e-dele.shtml
Os helicópteros zuniam no céu, sinal de que o ônibus da seleção brasileira voltava à Granja Comary depois de um dia de folga. Há sempre alguém lá em cima zelando pelo time do Feli…
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Afonso Caramano é servidor público municipal e escritor, Jaú, SP