É senso comum dizer que o futebol no Brasil é uma religião. Olhos brasileiros já viram desfilar nos campos um panteão de deuses. Mas a Copa de 2014 terminou para nós num pesadelo, ainda na semifinal. Desses que especialistas podem chamar de “trauma cultural”, eventos que marcam profundamente uma cultura e passam a compor o imaginário nacional. A despedida melancólica contra a Holanda só magoou a ferida aberta pela derrota diante da Alemanha pelo placar de 7 x 1.
Muito já foi dito sobre a importância do futebol na construção da nação brasileira. Mas talvez nunca antes tenha sido possível ver com tanta clareza esta relação. Os usos da conquista de 1970 pela propaganda do governo militar serão sempre lembrados, mas daqui pra frente suspeito que 2014 passará a ter um papel fundamental na narrativa que compõe a nação como “comunidade imaginada”.
O desfecho da semifinal terá tido um peso importante para isso. Senão vejamos: por que o Brasil perdeu de maneira tão acachapante para a Alemanha? Como explicar os quatro gols sofridos em seis minutos, entre os 22 e 28 minutos do primeiro tempo? “Falta de controle”, “apagão”, “pane geral” foram expressões usadas pela mídia nacional e internacional. Antes da partida, alguém da comissão técnica alemã falou em explorar o fato de que os jogadores brasileiros estavam muito “sensíveis”.
A excessiva emocionalidade da seleção brasileira virou pauta midiática depois que os jogadores choraram na execução do hino nacional e, principalmente, ao término da prorrogação contra o Chile, antes da cobrança dos pênaltis, nas oitavas de final. Tiago Silva, o capitão, foi quem mais pressão sofreu, pelo fato de sua sensibilidade supostamente não condizer com sua função de liderança. Em resposta, disse em entrevista que ídolos nacionais, como Ayrton Senna, só foram campeões porque, como ele, se entregavam totalmente ao que faziam. E se emocionavam.
A cordialidade brasileira
Com a emoção, o Brasil se achou e se perdeu na constelação de nações ocidentalizadas. Desde Sergio Buarque de Holanda, somos pensados a partir de nossa nota dissonante em relação ao processo civilizador que conformou a “civilização ocidental”, com sua capacidade de controle das emoções e das funções corporais. A racionalidade ocidental tal como descrita por Max Weber é a régua a partir do qual a nossa “cordialidade” aparece como marca própria da cultura brasileira. Cordialidade, lembremos bem, não se confunde com gentileza, mas com a tendência a agir com o coração, emocionalmente, e não de modo racional.
Nesta Copa, a mídia reforçou a visão de um Brasil situado no polo da sensibilidade, em sua oposição à razão, à contenção, ao cálculo, justamente as qualidades destacadas no seu algoz, a seleção alemã. É interessante notar os dois lados desse alinhamento. Segundo um viés mais positivo, matérias davam conta do quanto os estrangeiros estavam apreciando a cordialidade brasileira, a demonstração mais livre dos afetos e a liberdade do corpo, projetada, sobretudo, na figura de uma mulher “disponível”. Na outra ponta deste mesma formação discursiva, estavam a preocupação manifesta pelo estado emocional dos jogadores, sobretudo, no jogo contra o Chile; a comoção nacional provocada pela lesão de Neymar no mesmo jogo – que a repórter bem-humorada de um telejornal francês tratou como um “verdadeiro drama de telenovela brasileira” –; as notícias sobre as reuniões com a psicóloga da seleção.
Nas reações à derrota, a emoção tem dominado, mas, curiosamente, tem se manifestado em boa dose de sarcasmo e autoironia, pelos menos nas piadas que circulam pelas redes sociais. Isto talvez sinalize que estamos começando a nos afastar do culto ao futebol como forma de compensação de nossas frustrações. Tal distanciamento não será fácil porque o Brasil aprendeu a se ver nesse jogo. Talvez porque, nele, uma consciência corporal sedimentada durante séculos na nossa cultura fez de pretos e mestiços verdadeiros dançarinos e acrobatas do futebol que mais nos interessa. Com isso, o jogo pode se tornar um momento mágico da transubstanciação da fraqueza em força, e este é um apelo importante na explicação de sua popularidade. Em 2014, o encantamento não ficou somente entre as quatro linhas. Muitos de nós, público e jornalistas, embarcamos na ilusão de que a emoção que nos fragilizava podia também nos redimir, com a “força da torcida”, a “garra dos jogadores” diante de quase nenhuma tática. Resta-nos então um esforço de distanciamento e reflexão para que a cordialidade brasileira seja encarada como o limite e a potencialidade da nossa forma de estar no mundo e que, como tal, está exposta às lições do tempo.
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Maria Eduarda da Mota Rocha é doutora em Sociologia e professora adjunta da Universidade Federal de Pernambuco