Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Renovação já, o único consolo possível

Depois de quase um mês de curtição e farra, o pesadelo. O déjà vu que faz a tragédia do Maracanazo de 64 anos atrás ser revista aos olhos da história. Barbosa, Bigode e os demais amaldiçoados integrantes daquela seleção podem finalmente descansar em paz, diante da verdadeira percepção do que é vexame e vergonha. Sentimentos emanados dessa inominável goleada para a Alemanha e completamente diferentes do trauma e da frustração por aquela derrota de 50, ocasionada, segundo nossos próprios algozes uruguaios, muito mais por fatalidade e capricho dos deuses da bola do que por outra coisa.

Enredos diferentes, mas forjados pelos mesmos mecanismos de idiotização coletiva induzidos pelos meios de comunicação, que tem no apelo emocional o seu principal artifício de convencimento, a tal estratégia da distração fartamente demonstrada por estudiosos como Noam Chomski. Se na Copa de 50 o clima do “já ganhou”, estimulado às escancaras pela imprensa, fez com que o repúdio popular se manifestasse contra o que para alguns pareceu autossuficiência e, para outros, covardia do time brasileiro, no desastre de agora, a impotência e incompetência foram tão evidentes que o sentimento que sobra é de vergonha e resignação.

Daí, sem dúvida, a responsabilidade direta da mídia e consequentemente dos veículos mais influentes, como a Rede Globo, na medida em que apostou todas as suas fichas por audiência numa cobertura francamente amistosa e complacente, obviamente para não destoar do clima festivo que se instalou tão logo a competição foi se desenvolvendo. Cobertura centrada nas aparições da dupla Galvão Bueno e Patrícia Poeta no Jornal Nacional, que ao longo de toda competição, seja na Granja Comary ou no local dos jogos, ditaram o tom coloquial e antijornalístico com que se criou a ilusão de que a seleção estava em boas mãos, e no caminho certo.

Cobrança e questionamento

Mais do que isso: deve-se a este meloso e enfadonho script um pecado ainda maior num jornalismo que se preze, com a exploração abusiva do aspecto emocional em detrimento do racional e da reflexão. Não bastasse o tratamento condescendente e enganoso que se deu a vitória contra a Colômbia, em que as dificuldades foram relevadas em nome de um suposto resgaste do espírito competitivo exibido na Copa das Confederações, a lesão e a consequente perda de Neymar pelo resto da Copa serviram de pretexto para uma dramatização ridícula e inconsequente, que não fez senão acentuar a dependência e a própria falta de planejamento da seleção em relação ao craque.

Tudo bem que há interesses comerciais pesados em jogo, que incidem, tolice ignorar, em acordos velados com os patrocinadores e a própria Fifa, que, afinal, é a dona da bola, e por isso mesmo quase sempre poupada de críticas. Como neste escândalo da venda clandestina de ingressos desviados, ao que tudo indica, por gente ligada à própria entidade, como o britânico Raymond Whelan, diretor da Match Service, que chegou a ser detido devido às evidências de ser um dos chefes da máfia descoberta pela polícia carioca. De qualquer forma, maneirar nas críticas e enfatizar os pontos positivos tem sido a tônica adotada pela imprensa em geral, no ensejo da reversão do pessimismo que inicialmente se dedicava à realização do evento no Brasil.

Para não destoar da animação reinante, a mídia em peso aderiu de corpo e alma ao vamu qui vamu e tamu juntu veiculado pelo próprio marketing ostensivo em torno da competição, com direito a inserção de toscas mensagens alusivas dos próprios atletas. Tudo muito legal e instigante, mas extremamente enganoso como mensagem e deletério, jornalisticamente falando. Com a seleção bem ou mal galgando os tais sete degraus citados como mantra por Felipão e pelos apresentadores globais, como uma espécie de contagem regressiva para o sonhado hexa, deixaram-se de lado premissas básicas do jornalismo, como cobrança e questionamento.

Uma importância desmedida e desproporcional

Ainda que uma postura mais crítica e equilibrada da imprensa provavelmente não mudaria a sorte da equipe, que é bem fraquinha, como se viu ao medir forças contra um adversário mais qualificado, evitar esse colossal vexame já estaria de bom tamanho. Perder de forma mais digna não iria revoltar nem chocar ninguém, ainda mais em se sabendo de antemão do poderio da Alemanha, cujo time vem sendo montado há seis anos ou mais, pois o trabalho de base que permitiu essa renovação vem desde a Copa de 2002, quando governo e clubes se aliaram para investir na formação de novos valores.

Ou seja, os alemães não esperaram nem precisaram passar por qualquer vexame, muito menos um monumental como este que o país sofre agora; bem ao contrário, tudo isso foi feito a partir do vice-campeonato naquele ano, contra nosso mesmo futebol brasileiro agora humilhado. Futebol brasileiro que vê sua história irremediavelmente manchada, sem falar na autoestima do país em frangalhos, contrariando o que a presidente Dilma tinha acabado de declarar, ao precipitadamente se vangloriar do êxito da empreitada de promover a Copa no Brasil.

“Calma, gente, isso é apenas futebol”, tratava de contemporizar o incorrigível Galvão Bueno, ao ver soçobrar, melancolicamente, o time que até pouco antes enaltecia. Sim, claro, trata-se tão somente de futebol, e o ideal seria se as discussões e tudo mais que lhe digam respeito ficassem tão somente no âmbito do esporte. Mas quando a imprensa é a primeira a transferir ao jogo e seus personagens uma importância desmedida e até desproporcional a seu real papel no contexto social, onde deveria ter função muito mais recreativa do que outra coisa, as distorções e aberrações são inevitáveis.

Os dinossauros da crônica esportiva

O que explica a conotação dramática e o verdadeiro fetiche exercido pelas competições mais importantes, com a Copa do Mundo em primeiríssimo plano, graças às cifras bilionárias que passou a envolver com a transformação do futebol no produto mais valioso do show business mundial. Separar o profissionalismo e o equilíbrio que devem nortear o exercício da crítica com as imposições mercadológicas tem sido um desafio raramente levado a bom termo pela mídia especializada, como mais uma vez foi possível observar no desempenho da imprensa na presente cobertura.

Por mais que a distinta plateia já esteja acostumada com tais distorções, e mesmo aberrações que ficam por conta do passionalismo inerente ao futebol, as derrapagens da mídia nessa Copa extrapolaram os limites mais comezinhos de compostura e comedimento. Com a Globo, como já disse, usando e abusando do direito de pautar e ser pautada pela opinião pública, e cujo engajamento à cruzada pelo hexa, até certo ponto natural e desculpável, no fim revelou-se contraproducente e danoso, por ter se tornado cúmplice de uma liturgia defasada, escancarada na forma quase infantil como se deixou atropelar pela Alemanha.

Daí o constrangimento indisfarçável que se abateu sobre o quarteto global que transmitiu a hecatombe do Mineirão, cujo ar compungido e as claudicantes tentativas de explicar o inexplicável não deixaram de soar como uma espécie de confissão de culpa e incompetência pela cumplicidade com os equívocos que cercaram os preparativos da seleção. Equívocos dos quais Galvão Bueno e sua troupe se tornaram reféns, pelas regalias usufruídas junto à comissão técnica, e em especial do técnico Felipão, que ainda na véspera do jogo fatídico saiu da concentração para participar ao vivo do costumeiro boletim da dupla para o Jornal Nacional.

Resta esperar que, chegada a hora de prestar contas e arcar com as consequências, justiça seja feita. Que não só o técnico seja remetido a uma merecida aposentadoria, pois obviamente não errou sozinho. Que a renovação seja ampla, geral e irrestrita, indo da retrógrada cúpula da CBF aos dinossauros da crônica esportiva, com o afastamento de Galvão, Arnaldo e outros manjados nomes que simbolizam o atraso e impedem a renovação urgente e vital que se impõem no futebol brasileiro.

Só assim para que algum proveito se tire dessa brutal decepção.

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Ivan Berger é jornalista