Passado o frenesi futebolístico, a ressaca agravada pela recorrência de más notícias e carnificinas por atacado, que primam pela demonstração de indiferença e completo desprezo pela vida humana, só faz aumentar a vontade de ir embora para Pasárgada, ou para a Alemanha, onde o que já era bom ficou melhor ainda.
Fatos como o avião malaio abatido em território ucraniano com quase 300 civis a bordo e o recrudescimento do eterno conflito entre judeus e palestinos, que em poucos dias ceifou centenas de vidas à guisa do secular princípio bíblico do olho por olho – hoje em dia praticado na proporção de um por cem pelos israelenses –, nem parecem fazer parte do mesmo planeta que foi capaz de vivenciar uma simbiose tão próxima do mundo idealizado pelo genial beatle John Lennon no seu hino pacifista Imagine, como ocorreu na Copa do Mundo que o Brasil tão lindamente soube promover.
Não que a humanidade tenha deixado de se engalfinhar e se digladiar, como faz desde os primórdios pelas mais variadas motivações, ao longo dos 30 e poucos dias em que o mundo só teve olhos para aquela que acabou sendo considerada a melhor de todas as copas, a Copa das copas, graças à sequência de jogos emocionantes e ao clima de festa e confraternização que reinou durante todo o evento. Os conflitos não deixaram de existir, alguns até se agravaram, como a crise entre Rússia e Ucrânia, e a insurreição xiita no Iraque, mas a simples mudança de foco da imprensa, especialmente a brasileira, fez com que o mundo parecesse momentaneamente apaziguado ou anestesiado, o que se explica pelo público de aproximadamente 3,5 bilhões de telespectadores que se estima tenham acompanhado a competição.
Nenhum evento até hoje realizado se compara a tal tsunami futebolístico alavancado por uma cobertura midiática massiva e emotiva, para não dizer francamente passional, responsável direta pela transformação do evento no grande sucesso que se viu. Sucesso até certo ponto surpreendente e inesperado, por tudo que já foi exaustivamente dito e explorado. Mas, como tudo na vida é passageiro, o bem-bom futebolístico também tem prazo e hora para acabar, e por melhor e mais elogiável que tenha sido a competição em seu todo, há coisas obviamente mais importantes e prioritárias a fazer, como voltar a se concentrar no trabalho, em ganhar a vida.
A volta de Dunga
E com os bons fluidos aos poucos se diluindo, em meio à volta dos que não foram, ou seja, o retorno das velhas pendengas domésticas e internacionais momentaneamente ofuscadas pela competição, o grande desafio que se apresenta para nosso país, em particular, é não deixar que as lições inerentes a tão didático evento caiam no esquecimento. Desafio que passa – e é aí que a porca torce o rabo – por uma improvável conciliação de interesses e conjugação de esforços entre correntes político-partidárias que teimam em tratar o país como um feudo, cuja posse é disputada muito mais na base da lábia e de falsas promessas do que com altruísmo e seriedade de propósitos.
Cenário que, por isto mesmo, tem servido de pasto para as habituais escaramuças entre a imprensa hegemônica e a chapa-branca, que contaminam o meio midiático e se esmeram na arte de semear discórdia e atazanar-se mutuamente. Com a discordância e a beligerância como únicos pontos convergentes, não sobra espaço, e muito menos vontade política, para que o legado da Copa seja devidamente aproveitado, não só no âmbito esportivo como no sentido de livrar o país de idiotices como o tal complexo de vira-latas e outros estereótipos usualmente explorados na imprensa para depreciar o país.
Mas se depreciar o país por motivações políticas ficou bem mais difícil após o estrondoso sucesso da Copa, ver os benefícios do tal legado são outros quinhentos. Visíveis inicialmente apenas para fins eleitoreiros, seus possíveis ensinamentos parecem ainda mais efêmeros na área esportiva, cuja autonomia é salvaguardada pela própria Fifa, que veta a intervenção governamental em entidades filiadas. Daí os indícios de que as mudanças serão meramente cosméticas, ou seja, apenas de nomes, como já se pode depreender com a indicação de Gilmar Rinaldi como novo coordenador das futuras seleções.
Ex-goleiro que fez fortuna como agente de jogadores de renome, como o centroavante Adriano, o nome de Gilmar Rinaldi surpreendeu a opinião pública e não foi bem digerido pelo meio esportivo, ainda mais com a preferência que o mesmo teria pela volta de Dunga – escrevo antes do anúncio oficial do novo técnico – ao comando da seleção principal. Dunga, que após o fracasso na Copa de 2010 na África do Sul teve apenas uma rápida passagem pelo Internacional, no ano passado, mas que volta a cena, sobretudo, por conta da velha amizade com o novo manager escolhido por José Maria Marin para comandar uma ampla reformulação em nossas seleções, incluindo as de base, que continuarão com Galo à frente.
A catatonia do futebol
Aparentemente ainda aparvalhada pela anódina cobertura que mascarou a fragilidade da seleção montada por Felipão, a imprensa esportiva praticamente deu de ombros para a nomeação que para alguns, equivale a botar uma raposa para tomar conta do galinheiro. Mas nada que surpreenda partindo do decrépito presidente da CBF que, amparado por estatutos que garantem poderes absolutos e perpetuação no cargo, graças a um sistema eletivo corrompido e facilmente manipulável, manda e desmanda em nosso futebol sem precisar dar satisfações a ninguém.
Ainda mais com a cumplicidade e o arrego dos veículos mais importantes, como a Rede Globo, detentora vitalícia dos direitos de transmissão das principais competições. Vínculo que provavelmente resultou na cobertura complacente e comprometedora que marcou as transmissões da emissora até a débâcle contra a Alemanha, quando nem toda bagagem e experiência de Galvão Bueno foi capaz de salvar as aparências e justificar a leniência para com as deficiências crassas que culminaram com aquela goleada vergonhosa.
Nada, porém, que não tenha sido visto antes em nosso futebol ou que implique em mudanças drásticas que da boca para fora, todos reivindicam. Até os que compactuam diretamente com esse estado de coisas, e cujo ecletismo camaleônico explica por que as medidas efetivamente saneadoras continuem sendo proteladas. Exemplo cabal da resistência encruada a qualquer mudança mais radical, e muito mais a reformas estruturais como as que permitiram o reerguimento do futebol alemão, é a preservação da linha editorial indolente e maneirosa por parte da Globo, como se viu ainda neste domingo no Esporte Espetacular, que não só manteve o habitual oba-oba como praticamente endossou as mudanças meramente paliativas encaminhadas pela CBF. Com direito à apresentação de Gilmar Rinaldi como uma espécie de salvador da pátria, em longa matéria apresentada pelo repórter Régis Rosing, em tom obsequioso de fazer inveja a canastrão de novela mexicana.
Réquiem perfeitamente adequado, pensando bem, para a catatonia em que encontra nosso futebol.
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Ivan Berger é jornalista