Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O oportunismo e a ganância da ‘grande imprensa’ brasileira

Nos últimos anos tenho feito um esforço enorme para não mais me deixar surpreender pelas decisões dos responsáveis pela grande imprensa brasileira. Trata-se de uma vontade própria, complexa e que quase já estou dando o braço a torcer. Pois em um país em que o consumo de produtos e serviços alcança números exorbitantes, as fronteiras do possível e do impossível, do ético e do não ético, tornam-se reféns do oportunismo e da ganância das corporações controladoras dos veículos de comunicação que não medem esforços diante do desejo de “lucrar” frente a qualquer tipo de situação.

A palavra “lucrar” aqui está sendo utilizada também para denotar que atualmente os empresários mais ricos do mundo estão preocupados com suas imagens e com a visibilidade e a repercussão das suas decisões frente à sociedade. Nesse caso não estou tratando da famosa responsabilidade social das empresas que, ano a ano, aproveitam os espaços da mídia para fazer doações milionárias para programas de cunho “social” e com isso estabelecer uma “fama para deitar na cama” e colar o selo de empresa solidária renovando os votos e a fidelidade de seus clientes. Sem sombra de dúvida, para deduzir os impostos através de seus “mimos” para com os consumidores que mais precisam, conforme a sua visão mercado.

Como exemplo do oportunismo e da ganância da grande imprensa brasileira, focalizarei minha análise em duas situações que surgiram nas últimas semanas. Uma delas retratou o caso do empresário Rafael Gambarim. Talvez pelo nome você não esteja reconhecendo quem é. Mas basta citar que ele foi responsável por quebrar uma televisão enquanto assistia à disputa de pênaltis entre Brasil e Chile que logo alguém se dará conta da pessoa de que estamos falando, do personagem que protagonizou uma ação que ganhou espaço nos principais veículos de comunicação. No entanto, não é o fato do empresário quebrar a televisão que ganha destaque, mas, sim, a repercussão da informação confeccionada pela grande imprensa de que alguém é tão torcedor, tão brasileiro, que é capaz de se emocionar tanto que até quebra a televisão demonstrando a sua paixão pela Seleção brasileira.

Expressões ganham vida

A imprensa corporativa, que vive de patrocínios e se alimenta dos sonhos de uma vida de novela da maioria da população brasileira, sente-se na obrigação de repercutir ações tão brasileiras – quebrar uma televisão em nome da Seleção, por exemplo – que parece até bonito, tão inédito de se registrar esse feito para a posteridade. Tanto quanto um vírus pegajoso e contagioso, que cria alardes e se espalha rapidamente, a repercussão de que foi quebrada uma televisão em nome da Seleção logo assanha os publicitários que veem nela a oportunidade de tirar vantagem da situação e emplacar uma boa imagem das suas respectivas empresas contratantes. Assim, não se incomodam em distribuir alguns “mimos” para o torcedor apaixonado que viu no seu desejo de assistir ao jogo do Brasil e Chile um tormento por ter quebrado o aparelho que o conectava aos “heróis nacionais” do time brasileiro em busca da vitória.

O meu artigo não vai reproduzir o nome das empresas que o “presentearam”, pois esse não é o meu objetivo. Mas o que mais chama a atenção é a justificativa para lhe dar de graça algo que é tão caro a qualquer outro consumidor. Nesse sentido, convido os leitores e leitoras desse artigo a procurar, pesquisar e apontar os movimentos que foram feitos pelos publicitários e tentar sacar se, talvez, quem sabe, desde o golpe fatídico ao televisor não possa ser tudo parte de uma estratégia para causar um impacto e provocar a considerada boa repercussão para as empresas que se alimentam de factoides, talvez não nesse caso específico, mas sejam eles quais forem.

O outro exemplo da ganância e do oportunismo da grande imprensa brasileira carrega características diferentes da anterior. No entanto, parece ser mais grave, já que explora a imagem de crianças e do cotidiano de uma brincadeira. Trata-se da repercussão que ganhou as telas e as páginas dos veículos de comunicação utilizando um certo Taca-le pau. Peço a você, caríssimo leitor desse artigo, que pare um instante e reflita comigo. Até uns dias atrás, Taca-le pau não significava nada para você, possivelmente você nem daria bola se ouvisse algo do gênero e passaria despercebido pelo assunto. Contudo, no mundo em que você e eu vivemos não existe mais o significado enquanto algo que se cria através de um conceito justificado, mas sim, como da noite para o dia, as expressões ganham vida através da grande imprensa; e aquilo que parecia não ter sentido se torna tão comum e corriqueiro que todo mundo parece entender como óbvio. Assim é com as expressões, mas também com os fatos, com as realidades, com as decisões das pessoas. E tudo ocorre de uma forma como se parecesse natural, como se tudo fosse sempre assim.

As consequências

Por exemplo, do dia para a noite a brincadeira de duas crianças em férias no município de Taió, Santa Catarina, acaba ganhando uma repercussão inimaginável e ninguém pensa como essas situações adquirem visibilidade. Mas essa exposição se transforma num desejo de apropriação dos veículos de comunicação. E não são as crianças que desejam a visibilidade, possivelmente elas nem entendam como isso funciona ou do que realmente se trata. Mas a grande imprensa sabe muito bem, os publicitários e os oportunistas de plantão têm certeza que naquela exposição está mais uma vez a chance de lucrar. E assim, mais rápido que a própria brincadeira com o carrinho, logo os agentes correm atrás para conseguir mostrar quem são aquelas crianças e o feito que elas realizaram. A exposição não é medida, as consequências não são pensadas, pois para os soldados da grande imprensa todas as pessoas querem ser famosas e o que falta é a oportunidade, mas eles carregam essa importante missão de criar o que as pessoas vão gostar, mesmo que seja por pouquíssimo tempo. Diante desse fim, a brincadeira ganhou as telas dos smartphones e se transformou em um game que pode ser obtido por qualquer pessoa que possua o aparelho. E, não mais que de repente, logo as pessoas puderam estar escutando a voz da criança narrando e brincando com o carrinho, mas na tela do seu aparelho. É ou não de se surpreender?

O oportunismo chega a tal ponto que até um tradicional programa de jornalismo sensacionalista aqui do Rio Grande do Sul está trazendo uma chamada com a expressão “Taca-le pau… véio”. Este é demarcado como o momento em que o apresentador no mais alto da sua indignação, ou sei lá qual o nome daquilo, grita, esperneia, dizendo que está tudo errado no Brasil. Todos os dias se repete essa situação, mas agora denominada com a vinculação da expressão criada pelas crianças que estavam brincando em férias em um carrinho. Não entrarei em detalhes porque esse não é o foco do artigo. Mas enfim, concluindo, o que cabe destacar é o quanto os responsáveis pela grande imprensa brasileira se apropriam de tudo o que lhes é de interesse, sem pensar nas consequências e nas pessoas envolvidas.

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Marlos Mello é jornalista e psicólogo