Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Viralatizar: questão em jogo

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva acertou em disputar trazer a Copa do Mundo para o Brasil. Não se intimidou. Mais uma vez, como de costume, acreditou no país. E ganhamos. O Brasil bateu um bolão; a nossa seleção é que não jogou futebol. Aliás, a formação e o treinamento do time não foi o assunto privilegiado dos meios de comunicação que se ocuparam da cobertura dos preparativos do país para a Copa. O interesse se voltou para a nossa capacidade receptiva na forma da oferta de infraestrutura em obras a partir do zero e ampliações de segmentos já existentes.

Interesse não é exatamente a palavra adequada para definir a forma cachorra vira-lata como grande parte da elite pensa o Brasil e a mídia identificada com esse modo de conceber o país a propaga.

Irresponsabilidade parece ser mais apropriada. Falaram tão mal de nós, chutaram como vira-lata nossa capacidade de gerenciar os aeroportos, facilitar a mobilidade e tirar do chão um gramado para a realização dos jogos, que a imprensa estrangeira aproveitou para deitar e rolar sobre um país que assim é internacionalmente apresentado pela sua imprensa considerada confiável e respeitável. “Eu me lembro de uma capa da (revista alemã) Der Spiegel com uma bola de fogo caindo sobre o Brasil, prevendo manifestações, entre outras coisas pessimistas, mas nada se concretizou”, diz o russo Vitaly Mutko, presidente do Comitê Organizador Local-2018, em matéria publicada na página 16 do caderno Copa 2014 de O Globo do dia seguinte à final entre Alemanha e Argentina.

A próxima Copa do Mundo será na Rússia e o presidente Vladimir Putin promoveu encontro entre os staffs de Brasil e Rússia para conhecer o nosso processo. Sobre corrupção, tema essencialista da moral das elites capitalistas replicada na imprensa a serviço do capitalismo, diz ainda a matéria: “Não raramente, Mutko trava embates com a imprensa do seu país e do exterior por causa de temas de corrupção que envolvem a Rússia. Ele mesmo já foi cobrado pela Câmara da Auditoria do Parlamento Russo por ter apresentado 97 contas de café da manhã durante os 22 dias que passou em Vancouver, Canadá, observando os Jogos Olímpicos de Inverno de 2010.”

A desqualificação sistemática

Na página 10 do mesmo caderno, dessa vez em matéria sobre as Olimpíadas que vamos sediar em 2016, o subsecretário estadual de Turismo, Carlos Luiz Martins, também fala sobre a detratação que o Brasil sofreu: “A mídia internacional foi muito madrasta quanto à realização da Copa (…). O estrangeiro que veio pensando que encontraria uma verdadeira selva, temendo ser assaltado, viu que o Rio é uma cidade hospitaleira e amável e que o brasileiro sabe conviver bem com a diversidade (…)”.

De fato, sabemos lidar com a diversidade. O pacto vira-lata entre elite e mídia conservadora é que tem horror a essa mistura quando ela pode apresentar ameaça de ultrapassar as linhas do campo material ou simbólico.

Mesmo com tudo dando certo, qualquer coisa era motivo para nos depreciar. Uma nota de graciosa aparência publicada na coluna Ancelmo Gois do dia 2 de julho me chamou atenção. Com o título “Por falar em gringo…”, dizia assim: “Lembra a história, contada aqui, de que três americanos debocharam da pronúncia de inglês usada numa daquelas gravações do metrô do rio que anunciam a próxima estação? Quem é fluente na língua de Obama diz que o inglês dos comissários de bordo daqui, por exemplo, é macarrônico.”

Não entendi o gancho. Esse, sim, me pareceu um tanto macarrônico. Entretanto, intuí que o nexo subjacente seguia a linha de desqualificação sistemática do Brasil.

Canoa furada

Mais um esforço em reduzir o brasileiro a um cidadão menor sem as qualidades superiores dos europeus extra-ibéricos e norte-americanos. Entretanto, creio que essa não foi uma jogada inteligente do jornalismo francamente ideológico. Por tudo, a nota é subserviente, preconceituosa e portadora de agudo desconhecimento sobre as investigações referentes à sociologia da Linguagem. O que me parece muito grave, já que a escolaridade, a educação, como se costuma repetir, é tida como a solução de todos os males produzidos pela brutalidade do capitalismo financeiro que agora recente, 2008, faliu a Europa, arrebentou com os Estados Unidos e só não promoveu um maremoto entre nós, brasileirinhos, porque o governo injetou o nosso dinheiro no nosso país mantendo a economia aquecida dentro do possível no cenário de era do gelo das finanças internacionais, garantindo, assim, o pleno emprego, o poder de compra do salário mínimo, os direitos trabalhistas e a ampliação dos ganhos sociais em moradia, educação e saúde. Ou seja, enfrentando a violenta crise financeira internacional na contramão da orientação neoliberal defendida pela pactuação já citada.

Mas, dizia, os mais modernos estudos de linguística, inclusive procedentes da terra de Obama, já aboliram do centro das investigações a distinção do acento e até mesmo da precisão sintática. O importante é se comunicar. E nisso, não nos trumbicamos. Muito pelo contrário. E tiveram que engolir. Mas nem assim ficou livre da pretensão alheia. O jornal francês Le Monde, na edição de 21 de junho, chamou o que deu certo de “le miracle brésilien”. O milagre brasileiro. E meu vizinho temporário, correspondente de uma emissora de TV suíça, num recurso derradeiro, disse que o Brasil era “um caos organizado”. Vira-lata, milagreiro e caótico. Os cães ladram e a caravana passa. E assim, muzambê, vamos crescendo ao largo.

Realmente, é preciso pensar em outra chave cognitiva para trabalhar com a teoria do caos. Isso porque a desmoralização externa e interna chegou ao ponto de afetar o próprio negócio do consórcio elite-mídia com patrocinadores e anunciantes questionando a eficácia de investimento numa canoa furada de espanta-freguês.

De vira-lata, nada

Mas isso acabou contaminando setores do pequeno varejo, comprovando que é sempre o mais fraco que paga a conta da irresponsabilidade retórica que freia investimentos e afasta negócios sempre apostando no desaquecimento da economia e no aumento da inflação. De acordo com notícia publicada no site de O Dia, de 30 de junho, faltou pão em padarias de Copacabana: “Grande movimento provoca ‘crise’ de abastecimento no bairro, onde falta pão e caipirinha é campeã”. E o vendedor de canga do Posto 9, em Ipanema, lamentava o dono da fábrica não ter investido mais. “Ele ficou com medo, foi muita propaganda contra”, me diz Leandro.

A inflação, a propósito, é um fantasma recorrente na tática de viralatizar. Em 9 de julho, a primeira página do caderno de Economia de O Globo estampava: “Inflação fora da meta”. Acompanhava a manchete mal-assombrada e impactante o subtítulo “IPCA recua em junho mas, em 12 meses, vai a 6,52%. Passagens e hotéis sobem com a Copa”. Um susto de efeito. Difícil de reverter na leitura apressada e no entendimento imediatizado da correria do dia-a-dia. O jornal Estado de S. Paulo, por sua vez, projeta no editorial de 11 de julho “muita inflação pela frente”, e que “apesar do recuo dos preços por atacado e, especialmente, da acomodação dos preços dos alimentos, economistas do mercado têm mantido a expectativa de recrudescimento da inflação a partir de agosto”. É uma coisa incrível. Há recuo e acomodação nos preços, mas mesmo assim economistas do mercado estão seguros de que a inflação vai estourar a partir do mês que vem.

O lugar da fala credenciada também é um recurso muito utilizado como fiador da informação objetiva e verdadeira. O que daria um caráter insuspeito de qualquer inclinação ideológica. Mais adequado ainda quando acompanhado de pluralidade de opiniões editadas em uma mesma página. Neutralidade maior, impossível. Na França de um tempo atrás, Paris mais especificamente, corria nas redações uma piada sobre o que era objetividade: um minuto e meio para Hitler, um minuto e meio para os judeus. Pois a página 13 de domingo, 13 de julho, de O Globo, me lembrou a anedota. O sociólogo, o escritor e o empresário. Havia também o texto da OAB, mas esse está fora do contexto da análise. O empresário salvou a pátria. O escritor debochou do país e o sociólogo, logo em cima, fez o gol para a viralataria. Dentre outras coisas, indagou “Mas que povo é esse?”, referindo-se ao comportamento gozador, alegre e descontraído do brasileiro, mesmo diante das relações entre Fifa e CBF e a transação da venda ilegal de ingressos. O artigo segue dizendo que essa é uma reação “(…) que se esgota em si mesma (…). Enquanto há festa e chances de vitória, entramos no transe coletivo, quando vem a derrota caímos fora”. E mais adiante observa não ser caso de as “pessoas realizarem haraquiris porque a honra nacional foi maculada. Mas de assumir o lado sofrido, coletivo, reconhecendo que a desorganização da seleção, as falcatruas na CBF, as negociatas do Congresso Nacional, a cupidez das empreiteiras e a incompetência do governo falam de todos nós, pois a responsabilidade também é nossa”.

É a conhecida proposta ortodoxa da socialização do prejuízo. Nessa hora, o coletivo é evocado e convocado a pagar a fatura. Mas o povo não é bobo e, de vira-lata, no menor sentido do adjetivo, não tem nada. Tem, sim, no que há de mais gracioso e sedutor nessa raça da rua que aprendeu a se defender das ofensas e demonstrar gratidão e fidelidade canina aos que o acolhem. A meu ver, estamos muito mais para Koni, o esperto labrador preto que há 11 anos é mascote do primeiro-ministro da Rússia, Vladimir Putin. E é disso, me parece, que a campanha em favor do complexo de vira-lata tem medo.

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Maria Luiza Franco Busse é jornalista e doutora em Semiologia pela UFRJ