Foi um dos maiores dramaturgos, o tcheco-britânico Tom Stoppard, quem disse: se você assiste a uma peça maçante, e é obrigado a ficar até o fim, vai levar um ano para pisar num teatro outra vez. O panorama teatral brasileiro está ruim, sem opção, sem texto, com muitos pseudoatores desembarcados da telinha ainda há pouco. Para tirar o público do sofá a estratégia tem sido risos, besteirol, palavrão, atriz global. Uma experiência apagada nas palmas, sempre de pé. Vale para esquecer o tédio. As exceções são tão poucas que quando desembarca por aqui um gênio como Bob Wilson o melhor é correr. Corra para assistir no Rio de 8 a 12 de agosto a uma das apresentações de A Velha no Palácio das Artes. A diferença é que o Sesc paulista cobrava ingressos de 10 e 20 reais; no Palácio das Artes carioca os preços vão de 50 a 350 reais.
Não, a imprensa não critica nossa decadência na dramaturgia. Um velho pudor e respeito aos atores. Os jovens porque são jovens. Os antigos como Nathalia Timberg por ser uma grande atriz embora tenha deixado muita gente dormindo na plateia do teatro J. Safra inaugurado na sexta-feira (25/7), em São Paulo, com seu monólogo Paixão,de Betty Milan.
Mas uma peça do encenador Bob Wilson você nunca esquece. A Velha ainda traz o bailarino russo Mikhail Baryshnikov (66 anos) e o americano Willem Dafoe (59 anos) disfarçados cada um no outro, os rostos pintados de branco que lembram o Kabuki ou o teatro No, num papel em que se revezam como dois em um, mulher e homem, Ying e Yang, velho e moço. Os dois dançam até um pas-de-deux. A peça tem respingos de Buster Keaton, o burlesco e bizarro do Gordo e o Magro, o clown e o vaudeville, a graça de Bob Hope e Bing Crosby ou Ginger e Fred, rasgos de drama e riso, tableaux vivants e cenas inteiras que surgem como expostos num museu. Não é surpresa que os ingressos tenham se esgotado no site do SESC em 15 minutos.
O texto é de um desconhecido dramaturgo russo, Danii Kharms morto de inanição em 1942 aos 36 anos num campo de trabalhos forçados em Leningrado, hoje São Petersburgo. Em alguns momentos AVelha traz essa lembrança do terror imposto por Stalin com fotos associadas a perseguidos e prisioneiros, quase sempre, como no caso de Kharms, por não escrever textos que não se enquadravam no realismo soviético. Em outros momentos a cena é hilária e surpreende com repetições de frases que vão da fome ao horror (de hunger a “horror”). O núcleo da história é uma velha encontrada morta numa cama sem ninguém saber como, o que reflete a perturbação do escritor bloqueado na escrita, que se vê perseguido por cadáveres e fantasmas. Na peça isso é o que menos importa embora deixe sempre no final do histrionismo um gosto amargo de morte.
Diretores excêntricos
O teatro de Bob Wilson é feito de movimento. “Os dramaturgos se esquecem disso ao poluir com texto”, ele explicou numa entrevista concedida na última vez em que veio ao Brasil. “A linha visual continua quando um ator para de andar, sabemos que ele vai continuar”. A ilusão do andar é dada pela luz, o ator principal das peças de Bob Wilson, seguida pelo silêncio, esse tem de ser escutado pela plateia.
Cada vez que Bob Wilson desembarca no Brasil, quase sempre no SESC de São Paulo, ele deixa um rasgo fundo no panorama teatral. E ele é imparável. Quem viu a assinatura de Bob Wilson em algumas das obras-primas recentes não esquece. A Ópera dos Três Vinténs, de Bertold Brecht, Lulu de Frank Wedekind com trilha sonora de Lou Reed, a ópera Macbeth de Giuseppe Verdi – esta no Municipal de São Paulo –, A Dama do Mar de Ibsen reescrita por Susan Sontag, o próprio Bob Wilson no solo A Última Gravação de Krappe, Quartett com Isabelle Huppert e Ariel Garcia, The Life and Time of Joseph Stalin que a ditadura transformou em Dave Clark,cuja estreia mundial foi aqui, em 1974.
Qualquer uma, em qualquer ordem, ou as que passaram fora do Brasil, como Salomé, trazem ingredientes do expressionismo alemão, boa dose de vanguarda e surreal, nenhum deslize psicológico. E muito nonsense, A Velha é falada em inglês por Dafoe e em russo por Baryshnikov, com tradução em português no leitor acima palco.
A pergunta é: como pôde trabalhar com Bob Wilson um ator como Dafoe, acostumado a papéis como o duende verde em O Homem Aranha, um soldado em Platoon, um vampiro em A Sombra do Vampiro, o diabo no anúncio da Mercedes-Benz e o matador de Hotel Budapeste? Talvez Baryshnikov, pela disciplina do estilo clássico, estivesse mais acostumado ao rigor das marcações, aos movimentos de dança, ao silêncio.
Os dois atores estão lado a lado numa coletiva concedida no SESC antes da abertura do espetáculo e é Baryshnikov quem responde: “Você se engana, nesta peça o silêncio é ocasional, temos todos os tipos de sons”. Ele tem razão há silêncios, gritos, grunhidos.
Dafoe não comenta seus papéis em filmes, apenas com um riso, longe da plateia, diz “alguém tinha de fazer”. Mas garante que rejeita o naturalismo e concorda que uma das artes do teatro é a artificialidade dos movimentos formais.
Engano, Baryshnikov não estava à vontade. Ele diz que quem ensinou os passos da direção de Bob Wilson foi Dafoe, que já havia trabalhado com ele em Life and Deathde Marina Abramovic.Dafoe conta que um dia Marina chorou em cena e Bob Wilson reagiu, “você não chora, deixa o público chorar”. A artista servo-croata, conhecida pelas performances, respondeu surpresa “mas eu choro todo dia…”
“Bob não explica o que fazer”, diz Dafior, “nós sabíamos que havia dois personagens definidos como A e B, e quando perguntei se eu era A ou B ele respondeu ‘eu não sei’. Ele atira o texto, as soluções somos nós que vamos achar.”
Bob Wilson tem uma norma: “Se você já sabe, é inútil fazer”.
Baryshnikov explica um pouco do método, Bob Wilson fica na coxia com todos os colaboradores, os responsáveis pela iluminação, cenário, maquiagem, 10, 15 pessoas, olhando o trabalho dos atores no palco, e tudo vai sendo construído ao mesmo tempo.. “Fiz nesta peça coisas que eu nunca havia feito, até canto durante 30 segundos, o que foi assustador”, o bailarino ri e completa, “assustador até para quem é bom cantor, e eu sou profissional dos palcos há quase 60 anos, comecei com 9 anos na Letônia”. O eufemismo que Baryshnikov usa é meio brutal, “Bob nos faz engolir o anzol e depois ajuda a tirar o gancho da garganta”.
Todas às vezes que os atores, nervosos e com certo medo tentavam tranqüilizar o diretor dizendo “eu estou ok” ele não gostava. Dafoe explica: “Ele quer o ator quando ele não está ok, no fio da navalha, nunca confortável no seu papel, fora do prumo”. Cantar como um violino ou um cello, mover-se num movimento estático.
Baryshnikov fala da surpresa pelo desconforto e brinca com Dafoe: “Willem está mais acostumado, trabalhou com Herzog e Lars von Triers”, uma alusão a diretores no mínimo excêntricos, e com o dinamarquês controvertido Dafoe fez três filmes.
Fenômeno de mídia
A arquitetada construção de cada texto no laboratório Watermill de performances de Bob Wilson em Long Island, nos Estados Unidos, resulta uma simplicidade única, cenários clean, originais. “Nunca fiz escola ou meu teatro seria outro”, disse, “as escolas só ensinam a decorar.” Texano do interior, Bob só foi ver uma peça, uma ópera, aos 20 anos em Nova York. “Não gostei, e continuo não gostando do que vejo.”
O encenador, coreógrafo, escultor, pintor e dramaturgo americano Robert Wilson trabalhou também como iluminador, sonoplasta em montagens de Philip Glass, dos poetas e músicos Allen Ginsberg, David Byrne. Sua dança é influenciada por Martha Graham, Merce Cunningham, Jerome Robbins. Segundo Baryshnikov, Bob Wilson dança bem. Ele exibe aos atores um vídeo onde dança, e manda que repitam, à maneira deles.
Dança bem mas anda pesado. É um homem imenso, 1m85, 72 anos sem nenhuma extravagância pessoal, terno preto, camisa branca, ou tudo azul escuro. É canhoto, de pouco riso, e quando criança era autista e disléxico, com dificuldade para juntar palavras.
Adotou um menino de 13 anos, surdo, Raymond, que levou para o palco e fez experiências com o som. Revelou nos palcos o menino Christopher que passou 11 dos seus 13 anos de vida numa instituição para autistas. De certa forma tentou reabilitar e tirar do ostracismo a atriz Winona Ryder que foi apanhada furtando e viu a carreira desmoronar. Ela foi uma das personagens de “Voom Portraits”, fotos expostas no SESC Pinheiros há seis anos. Junto com Winona, Isabella Rosselini fotografada como Alice, Brad Pitt como Hércules.
Winona é Winnie enterrada até o pescoço como na peça Dias Felizes de Beckett que Bob Wilson montou. Por que Winona?
Ele explicou: “O pai dela era escritor morou na França, conheceu Beckett, era fã da beat generation, conhecia Allen Ginsberg, William Burroughs. Winona cresceu nesse ambiente, era bonita, inteligente, frágil, conheci quando ela era babá dos filhos de Tom Waits. Sempre me fascinou”. Não falou dos furtos. Ele fala pouco. Desenha, ouve, vê. Bob Wilson gosta dos silêncios.
Bob Wilson é um fenômeno de público e de mídia, tem a melhor cobertura das páginas culturais aqui e no mundo inteiro e nunca decepciona.
******
Norma Couri é jornalista