Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Língua como música

Recém-desembarcado pela primeira vez no aeroporto de Bancoc –uma cidade que já tive o prazer de revisitar uma boa meia dúzia de vezes–, tudo era tão diferente que eu tinha dificuldade em focar meus sentidos. Sim, porque não era só a visão que estava sendo atiçada naqueles primeiros minutos num país que eu ainda não havia estado –olfato (o aroma de cânfora do famoso “tiger balm”), paladar (o suco de capim-limão servido logo no desembarque) e audição (os primeiros sons que ouvia em tailandês) também eram estimulados.

Essa é uma das minhas experiências favoritas ao chegar num país novo para mim: ouvir a língua que eles falam sem o esforço de tentar entender, mas com o prazer de quem ouve uma música. Afinal, cada idioma tem sua sonoridade, e já que você não entende nada mesmo, entregar-se logo de cara a dicionários, “livros de frases”, ou mesmo (mais recentemente) aplicativos de tradução simultânea é, digamos, um desperdício sensorial.

Claro que você precisa se comunicar, pedir coisas, comer, divertir-se –e, eventualmente, até fazer amigos. Mas isso é uma etapa posterior. Nos primeiros passos que você dá num território estranho, o que sugiro é que você entregue seus ouvidos a esses sons nada familiares. E, se por acaso você tiver a sorte de estar na Tailândia, você será brindado então com algo próximo a uma sinfonia.

Talvez seja possível dizer isso de qualquer língua estrangeira. Eu mesmo já ouvi amigos de fora contar que adoram escutar o português sem entender nada: uma simples conversa nossa parece uma canção. Tenho essa mesma impressão às vezes ao ouvir o russo, que me parece bem cantado. Mas nada, em termos de “melodia da fala”, se compara ao tailandês.

Sem diferença

Ali então no aeroporto, naquela primeira vez em Bancoc, fui seduzido pelo anúncio das malas chegando nas esteiras de bagagem! Como uma informação tão estéril pode ser tão encantadora? O som anasalado do tailandês somado à suavidade com que eles pronunciam tudo ajuda. Mas há uma musicalidade extra que eles colocam em cada frase, que puxa o final da sentença para cima, como a promessa de um novo verso num poema.

Dificílimo explicar para quem nunca ouviu, mas, numa tentativa tosca, arrisco uma aproximação. Você certamente já ouviu “Tico-tico no Fubá”, um clássico de Zequinha de Abreu, imortalizado por Carmem Miranda. Imagine então a corridinha que ela dá logo no início, quando canta: “O tico-tico… tá comendo meu fubá!”. É mais ou menos assim que tailandês termina uma sentença.

Nas vezes seguintes que visitei Bancoc, fui me acostumando a esses sons –e até arriscando duvidosas incursões na língua. É duro… Um simples “muito obrigado” exige um fonema que não existe no nosso português –uma espécie de pequeno espirro, que faz com que a palavra soe algo como “cop-tchikhum-cnap”. Eu sei…

Toda vez que eu tento agradecer em tailandês, por mais que me esforce, recebo sempre um olhar de misericórdia, que quer dizer mais ou menos “obrigado você por ter tentado falar minha língua”… Mas tudo é uma questão de treino –ou não?

Exemplos assim não faltam. Como o estalado no céu da boca que a gente escuta na África do Sul e na Namíbia. Ou aquele suave “tl” que ouvimos sem parar na Islândia. Ou ainda o “erre” algodoado do hindi –que os indianos sempre trazem para o inglês. Uma língua aliás, não sem desafios fonéticos, como o conhecido “th”. Nossa “doce vingança” em português está no til –de “não”, de “pão”– que é praticamente impossível de ser repetido por quem chega de fora ao nosso país.

Mas que diferença isso tudo faz? No final, é tudo música…

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Zeca Camargo é jornalista