Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Astúcia midiática de resultado incerto

O período de seis semanas de férias parlamentares, batizado pela mídia alemã de “buraco do verão” (Sommerloch), se refere à ausência de temas urgentes e relevantes no âmbito da política interna do país. O relógio político para o início da cronometragem desse período é bem fácil de fixar: a presença da chanceler Angela Merkel no tapete vermelho do festival wagneriano que acontece sempre no final do mês de julho na cidade de Bayreuth, região da Baviera.

Quando se inicia o debate midiático sobre o guarda-roupa escolhido pela chanceler no evento e, no específico caso deste ano, o burburinho sobre a surpresa pela coragem de Merkel em repetir o conjunto azul turquesa já usado anteriormente na mesma ocasião, é porque o “buraco do verão”, chegou.

Merkel surpreende

O estilo de governo de Merkel é (e sempre foi) caracterizado pelo comedimento previsível para os diretamente influenciados pelas ciências naturais (Merkel é doutora em física). Na maioria das vezes, se fazer de “morta “e “esperar a tempestade passar” é a estratégia escolhida pela chanceler para lidar com a mídia e com as reações provocadas por ela, robusto e saudável quarto poder no Estado.

A mando da chanceler, o Ministério das Relações Exteriores emitiu uma nota a todas as representações diplomáticas e parceiros internacionais pleiteando destes “uma lista com os nomes de todos os agentes ativos” no país. Segundo matéria publicada na sexta-feira (8/8) no portal Spiegel Online, de autoria de Matthais Gebauer e Jörg Schindler, o governo aguarda a resposta “de todas as representações diplomáticas para as quais a nota foi enviada”. No texto, em formato curto e grosso, está enfatizado que o governo alemão “acredita que em todas as embaixadas estrangeiras estão estacionados agentes dos respectivos serviços secretos”. Alguns têm o status de residente legalizado, outros agem sobre o manto de attaché militar ou como funcionário de institutos de cultura, atesta a nota (ver aqui).

EUA, Rússia e China são os países com o maior número de agentes secretos radicados e atuantes na Alemanha. Segundo fontes da revista Der Spiegel, são 200 agentes americanos que atuam gozando da proteção de passaportes diplomáticos.

Foi também a Der Spiegel que, em 2013, publicou que a unidade de espionagem americana, a “Special Collection Service”, tem seu “quartel de espionagem” no prédio da embaixada dos EUA , localizada ao lado do Portão de Brandenburgo e a poucos metros da espinha dorsal do governo (com os prédios do Parlamento, espelhados nos prédios da chancelaria federal, o Reichstag, e do Paul-Löbe-Haus, onde ficam os escritórios dos parlamentares).

Devido à falta de cooperação por parte dos americanos no fornecimento de dados concretos para (algum) esclarecimento sobre a atividade de espionagem na Alemanha, a chanceler decretou, na segunda semana de julho, a saída do agente-chefe da CIA, John Brennan, do país. Essa medida foi tomada logo depois de vazar na imprensa que um funcionário do Departamento Federal de Informações (BND), o serviço secreto alemão, vendeu informações para os americanos. Mesmo devido à sua estada de apenas um ano no momento em que a notícia vazou, e que Brenann não possa ser responsabilizado efetivamente por essa operação, Merkel optou por um posicionamento “drástico” comparado com seu tradicional estilo de governo, sempre priorizando um tom moderado, cultivando a filosofia do “menos é mais”.

Analistas políticos interpretam a “dureza” dessa medida com “uma nova autoestima” que o país quer exibir. Muito já são os meses que Merkel tem que tolerar a insatisfação crônica dos alemães quanto ao desempenho da chanceler no “empreendimento do caso NSA”. O apelo de 80% a favor de um asilo para o ex-agente da NSA Edward Snowden, Merkel continua ignorando.

Daqui pra frente…

Como nada no estilo de governo Merkel é por acaso, a exigência de uma lista sobre os agentes na Alemanha surge logo depois que o jornalista Glenn Greenwald, em matéria publicada dia 1/8, voltou atrás em sua decisão de depor pessoalmente frente à CPI instaurada pelos Verdes, o partido esquerdista Die Linke, e tolerada pelos socialdemocratas (SPD), atuais membros do governo na coalizão com o partido de Merkel (CDU).

Em trecho de e-mail, enviado a CPI, Greenwald justifica sua decisão da seguinte forma:

“Eu apoio qualquer iniciativa do Parlamento Alemão na condução de uma investigação séria concernente a espionagem da NSA nos alemães. Infelizmente, os políticos alemães, com a sua recusa em entrevistar pessoalmente a testemunha-chave, Edward Snowden, mostram maior preocupação em não irritar os EUA do que conduzir, de fato, uma investigação séria. Por consequência disso, eu não estou disposto a fazer parte de um ritual que só tem a fachada de uma investigação séria, mas que está visivelmente condenada para evitar a descoberta de fatos, presenteando a opinião pública alemã com um simbolismo vazio e consequentemente manter o governo dos EUA feliz.”

Pouco antes da divulgação da recusa de Gleenwald, foi a vez do ministro da Justiça, o socialdemocrata Heiko Maaß, jogar fogo na lenha, polemizar e criar irritação na imprensa quando, em matéria divulgada em 29/7, aconselhou Snowden a voltar para os EUA: “Snowden tem somente 30 anos e, com certeza, não irá querer viver o resto de sua vida sendo perseguido ou pulando de um pedido de asilo para o outro. Se seus advogados fizerem um acordo com o ministério da justiça dos EUA, seria o melhor para ele”, afirmou Maaß.

Além da reação de bancadas dos partidos ao “conselho” do ministro, o jornal Frankfurter Rundschau publicou a reação da organização Repórteres Sem Fronteiras:

“Ao invés de aconselhar Snowden a retornar para os EUA, onde ele certamente terá que enfrentar uma longa pena atrás das grades, o ministro deveria se posicionar publicamente a favor de que o governo alemão garanta um lugar seguro para Snowden aqui. É um absurdo que Snowden tenha que viver num país como a Rússia, que chuta a liberdade de imprensa e monitora a atividade de seus cidadãos nos telefones e na internet” (ver aqui).

Pegando carona no beco sem saída em que a CPI se encontra, na recusa de Gleenwald e na rejeição do governo em deixar que Snowden venha pessoalmente depor em Berlim, Merkel reconheceu a rixa e surpreendeu com um posicionamento claro e rápido. Porém, analistas políticos se mostram céticos na real vontade política das embaixadas em se exercitarem em diplomacia e transparência. Além do mais, mesmo com a resposta condizente no formal, faltará conteúdo relevante o suficiente para dar relevância a esse empreitada midiática de verão.

Foi em vão a tentativa de Hans-Georg Maaßen, chefe do departamento de proteção à Constituição (Verfassungsschutz) e responsável pelo departamento de contra-espionagem, de conseguir a informação do embaixador americano John B. Emerson, em dezembro de 2013, sobre quantos agentes americanos atuam na Alemanha. Ficou sem resposta.

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Fátima Lacerda é jornalista freelance, formada em Letras, RJ, e gestão cultural em Berlim, onde está radicada desde 1988; autora do blog “Todos os caminhos levam a Berlim”, no Estadão.com