Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O grande irmão

Após o refresco da Copa, o pega pra capar das eleições renova a pilha de uma imprensa sabidamente rachada e em pé de guerra, do jeito que o diabo gosta. Diabo e prepostos que impregnam o meio político e manjados setores midiáticos, os quais, segundo reza a lenda, vendem a alma ao dito-cujo para lograr seus objetivos. Nesse cenário de antagonismo e beligerância, não estranha que a avaliação do desempenho da mídia se mostre tão errática quando ela própria. E pior do que uma imprensa torta são intérpretes de uma nota só, que só servem para fazer as coisas parecerem piores do que já são.

Filme, de resto, velho e chatíssimo, por conta da mesmice do enredo e canastrice dos atores, e cujo desenrolar, como está se vendo, chega àquela parte em que qualquer coisa que é divulgada, procedente ou não, é sistematicamente torpedeada de acordo com os interesses em jogo. Dentro do velho script de desvirtuar os fatos ou atribuir tudo a armações de cunho político-partidário. Ou seja, juram que é tudo mentira, intriga da oposição (ou situação), e em último caso, quando as evidências são escabrosas demais para serem contestadas, prometem que os fatos serão apurados com todo o rigor. E estamos conversados.

E não adianta elaborar matérias supimpas, reunir elementos, ainda que seja com grampos e filmagens gentilmente cedidas por terceiros, enfim, documentar as ilicitudes e delitos que fazem de nosso país o paraíso da vigarice. É tudo inútil, diante da impunidade assegurada por leis que qualquer advogado de porta de cadeia consegue driblar, ou que habeas corpus desovados a toque de caixa não tirem de letra. Sem falar na proverbial assessoria da imprensa engajada, sempre pronta a quebrar o galho e fazer o chamado trabalho sujo, em que o mote recorrente é enxovalhar os oponentes e desqualificar quem pensa diferente. Oremos.

Feitiço contra o feiticeiro

Além de lastimável e contraproducente, esse viés obscurantista no qual a imprensa nativa se embrenhou equivale a um verdadeiro tiro no pé, no sentido de que mesmo o seu lado meritório e inegavelmente crucial para a sociedade acaba apequenado e esvaziado perante a opinião pública. Um sintoma disso é a fraca repercussão e a quase apatia da população em relação às seguidas denúncias de malfeitos, adivinha, que a própria imprensa se encarrega de esvaziar ou até mesmo desacreditar, por ação dos tais paus mandados que não disfarçam seu partidarismo.

Caso clássico de feitiço que vira contra o feiticeiro acontece com a própria revista Veja, tida e havida como símbolo do jornalismo reacionário e conservador, e que mesmo distante do papel relevante desempenhado em outros tempos, não deixa de eventualmente publicar matérias importantes, notadamente na área política, sem dúvida sua especialidade. Material que, no entanto, por conta da contumaz má vontade e da assumida linha antipetista, acaba sendo facilmente neutralizado por seus oponentes, a ponto de a revista, inegavelmente, já não ostentar o prestígio e o poder de fogo de antigamente.

Tanto é que nem mesmo a denúncia da “cola” passada para os implicados na desastrosa e, porque não dizer, suspeita compra da refinaria de Pasadena pela Petrobras, a serem inquiridos na CPI instaurada para investigar o caso, feita com o habitual estardalhaço na edição da semana passada, e em tese altamente incendiária para o governo, sequer produziu as pressões e demissões de praxe. O teor das gravações que embasaram a reportagem foi justificado como um mero treinamento para a sabatina do Senado, ou por outra, simplesmente um ensaio do que os especialistas em comunicação chamam de media training, como se apressaram em acudir os serviçais da imprensa governista. Ah, tá… Como se dizia naquele antigo programa humorístico, me engana que eu gosto.

Em colherinhas

De qualquer forma, é o preço a pagar pelo desvirtuamento da nobre função de informar com isenção e profissionalismo. Como se sabe, reputações demandam tempo enorme para construir, mas podem desabar num instante, ainda mais em se lidando com o público. Que aparenta ser fácil de levar no bico – e vai ver até que sim –, mas cujo faro inato para detectar patranhas convém não subestimar. Além do que, como se diz popularmente, quem se inclina aos poderosos mostra a bunda aos oprimidos, e a própria Globo, que assumidamente comeu na mão na ditadura, sente até hoje na pele o estigma da rejeição.

A mesma Globo que eventualmente também é vítima da própria esperteza, que segundo o pensador britânico Benjamin Disraeli, quando é muita, vira bicho e come o dono. Daí que, não obstante sua inegável competência na orquestração de linhas editorias bem delineadas e específicas para cada público, os índices de um imaginário confiômetro vivem na chamada corda bamba.

E isso que seu carro-chefe, a poderosa rede nacional de TV aberta, que abrange a imensa maioria da população, prima por um conteúdo predominantemente formal e acrítico. Água com açúcar, ministrada em colherinhas no insosso Jornal Nacional. Diferentemente dos canais pagos, como a GloboNews e GNT, que trafegam em sentido oposto com sua grande variedade de noticiários, programas de debates e comentaristas de peso proporcionando o que há de bom e melhor em matéria de jornalismo de bancada.

É obvio que por conta disso, figuras de proa, como Miriam Leitão e Carlos Alberto Sardenberg, tiveram seus históricos sorrateiramente adulterados na Wikipedia – a enciclopédia cibernética aberta ao público – a partir de computadores da rede de internet do Palácio do Planalto. Golpe baixo e ilustrativo da manipulação grosseira da boa fé e ignorância popular inerente ao sórdido meio político, que conta com a cumplicidade de formadores de opinião inescrupulosos e oportunistas, virtuais mentores do famoso efeito manada que encontrou nas redes sociais o seu habitat perfeito.

Semiótica que se completa com a influência deste establishment cibernético nas próprias preferências artísticas – se é que se pode chamar de arte as baboseiras que fazem sucesso hoje em dia –, culturais (?), esportivas e até de ordem… sexual. Departamento, este, em que a valorização de formas e corpos esculpidos em academias que se espalham por todos os cantos, faz com que moçoilas bombadas e masculinizadas posem de símbolos sexuais do momento. Enfim, como há gosto pra tudo…

Justiça às avessas

Não é à toa que intelectuais renomados como Mario Vargas Llosa chamem os tempos atuais de era do espetáculo, em função da ditadura imposta pela onipresente mídia audiovisual. Definição, na verdade, até certo ponto branda e simpática para um fenômeno que parece bem mais grave. Se a marca da espetacularização é inegável e palpável para onde se olha e em tudo que se escuta, o que resulta daí é o que realmente denuncia a grande doença de nossos tempos: a idiotização coletiva decorrente dos valores frívolos em vigência e da inexorável banalização dos costumes.

Quem faz a cabeça da moçada hoje em dia? Quem influencia as pessoas, mostra o que acontece de bom ou de ruim, estabelece novos padrões comportamentais e culturais, diz no acreditar, o que consumir, enfim, quem é o Grande Irmão que zela por ti, como na profética obra 1984, de George Orwell? No livro, o poder absoluto converge para o governo, mas na vida real, ao menos por enquanto, a revolução tecnológica fez com que esse papel caísse no colo da mídia. O que apesar dos pesares, é bem melhor, convenhamos.

A má notícia é que a celebração do supérfluo, diretamente vinculada ao processo de rebaixamento cultural inerente à própria expansão demográfica, se por um lado representa um terreno fértil para a fruição midiática, por outro equivale a uma faca de dois gumes, ao favorecer a perpetuação das charlatanices e trambicagens que grassam no país desde os tempos de antanho. A falta de idoneidade e credibilidade dos agentes historicamente reconhecidos como guardiões e guias de regimes democráticos por excelência, como acontece aqui, se reflete no conformismo e na tolerância da população para com um circulo vicioso em que o próprio senso de justiça funciona às avessas.

Ou seja, pouco ou quase nada acontece em relação aos grandes e costumeiros escândalos, como a absurda compra da refinaria de Pasadena – se não superfaturada, como parece óbvio, um atestado monumental de incúria e incompetência por parte de pessoas que em tese lá estão para defender e zelar pela coisa pública –, mas que costuma ser draconiana em casos isolados e pontuais.

Como no rigor observado em relação aos 23 indiciados por atos de vandalismo e retratados pela mídia como virtuais terroristas, e assim estigmatizados e condenados a priori como ameaças a sociedade. Alvos do tradicional sensacionalismo da imprensa quando se trata de seu esporte favorito – a caça às bruxas –, os jovens tiveram suas vidas devassadas e expostas a execração pública por conta de acusações apresentadas pela imprensa antes mesmo de ajuizadas pela justiça. Ou seja, antes mesmo de comprovada a extensão da culpabilidade atribuída ao grupo.

Fabuloso maná

Não se trata de defender e muito menos justificar ações que efetivamente extrapolaram os direitos democráticos de protestar e clamar por mudanças. O que visivelmente está deslocado e fora de foco é a diferença de tratamento da justiça, como da própria mídia, entre delitos cometidos a sombra do poder, geralmente impunes e arquivados por decurso de prazo, e outros que a rigor só servem para desviar o foco das questões que realmente fazem diferença.

Contexto no qual, mesmo o eventual desencaminhamento que obviamente se deu com estes e inúmeros outros jovens que optaram por apelar para a baderna para serem ouvidos, deveria ser encarado muito mais pelo lado didático do que a simples criminalização. Afinal, há que considerar que muitos deles, talvez a maioria, se assemelham ao garoto resgatado pelo pai, praticamente na marra, em meio a um protesto em São Paulo dias antes do início da Copa. Garoto de boa índole, criado com desvelo pelos pais, como se viu nas várias reportagens que se seguiram, mas que diante de tanta coisa ruim acontecendo, e sem ninguém dê jeito, acabou aderindo ao clamor das ruas para protestar.

Podia ser filho de qualquer lar de pequenos burgueses, de vida mansa e acostumamos a ser tulelados por uma imprensa que está muito mais a fim de preservar o circo e garantir o crescente faturamento do que outra coisa. Lucratividade, diga-se de passagem, que só não é maior que o fabuloso maná que desfrutam os bancos brasileiros, e que valeu aos Marinho o segundo lugar na ranking das maiores fortunas do país, atrás apenas do lendário banqueiro e empresário Jorge Paulo Lemman.

Não menos sintomático é a volta de Sílvio Santos ao rol dos bilionários, apenas três anos após o tombo sofrido com a quebra do banco PanAmericano – com as bênçãos da mãezona Caixa Econômica Federal –, sem falar da inauguração do megatemplo do rei Salomão, da Igreja Universal do Reino de Deus do pastor Edir Macedo, dono da Rede Record, ao custo anunciado de R$ 680 milhões.

Sem entrar no mérito da indiscutível competência e esperteza dessa gente, o fato de o setor bancário, de entretenimento e filantropia pseudorreligiosa nadarem de braçada em meio à estagnação generalizada de nossa economia, seriam dignos de admiração e aplausos não fossem fruto, sobretudo, de todo tipo de exploração e manipulação da boa fé e ignorância popular.

E a pensar que o ex-presidente Lula, nos tempos em que era chamado por Leonel Brizola de sapo barbudo, e bem antes de ser saudado pelo presidente norte-americano Barak Obama como “o cara”, chegou a pensar em fazer aqui algo semelhante à razzia promovida pela presidente Cristina Kirchner no setor de comunicações da Argentina, com a virtual poda que desmembrou o império do grupo Clarín – a Globo de lá.

Quem te viu, quem te vê…

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Ivan Berger é jornalista