Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

‘Cartas-faladas’ foram moda no início do século 20

Um sargento chamado Salvatore Petron, dos Estados Unidos, já estava longe de casa, no Exército, há cerca de um ano. Era por volta de 1940, quando “Salvie”, como ele mesmo dizia, decidiu surpreender a família. Em vez de cartas, cartões postais ou simplesmente fotos, ele enviou pelo correio pequenos discos de gramofone. Num deles, uma voz distante e com um forte chiado lamentava: “Nossa, como o tempo voa”. Mais adiante completava: “Como está tudo? Passaram bem o Natal?”. Noutro, ele arriscava cantar a capela a música “Soldier Boy”. E, depois, até mesmo uma canção italiana. Poucos sabem, mas o “serviço fonopostal” foi popular nas primeiras décadas do século XX.

Essa memória perdida no tempo está sendo resgatada por um grupo de pesquisadores liderado pelo professor Thomas Levin, da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Registros íntimos, amores declarados, poesias declamadas e canções entoadas fazem parte agora de um banco de dados na internet – o projeto Phono-Post – que só faz crescer. No total, já ultrapassam as duas mil unidades que abrangem o período de 1905 a 1965. Aos poucos, os áudios estão sendo digitalizados e incluídos na internet com fotos dos discos. Levin vem vasculhando arquivos, pesquisando em sites de compra, fazendo apelos às pessoas em países da Europa, América Latina e América do Norte para aumentá-lo. A ideia, além do banco on-line, é reunir dados desta maneira pouco conhecida de se comunicar num livro, que deve ser publicado até o final do ano.

Busca por discos no Brasil

Além de filósofo especializado em teoria da mídia, Levin é colecionador. Encontrou o primeiro exemplar há alguns anos por acaso, achou-o interessante e iniciou uma busca para tentar entender mais sobre a descoberta.

– O mais impressionante foi começar a pesquisar sobre este fascinante capítulo da cultura midiática global e perceber que não havia arquivo em lugar nenhum no mundo que colecionava esses artefatos – conta.

Decidiu, então, montar o projeto, que ganhou o financiamento da Fundação Einstein em Berlim. Levin está no Rio de Janeiro em busca de exemplares brasileiros, e na semana que vem ele visitará o serviço postal de Brasília. A tarefa, ele admite, tem sido árdua, mas foi finalmente recompensada na última quinta-feira.

– Hoje à noite, por acaso, eu finalmente me deparei com o primeiro exemplar que eu já vi de um fonopostal brasileiro original. Que lindo objeto, não é mesmo? – celebrou o pesquisador, enviando por e-mail uma cópia da capa do disco, que data de 25 de dezembro de 1941.

Pelos cantos de cá, o “Serviço Fonopostal” foi lançado em 1941. À época, a propaganda dos Correios anunciava “discos fonográficos especiais” que “resistiam aos riscos de manipulação e de transporte”. O Brasil foi o terceiro país da América Latina a adotar o modismo, que começou pela Argentina, em 1939, e em seguida foi disponibilizado também na Venezuela. Na Europa, conta Levin, começou algumas décadas antes.

– Provavelmente, há discos como esse em todo o mundo – anima-se.

O gramofone permitia a gravação da voz de indivíduos que usavam os discos para propósitos diversos. “Cartas-faladas” (e cantadas) para amores, familiares, pessoas que não sabiam ler e escrever, poetas e cantores que queriam se ouvir e até soldados em quartéis ou nos fronts de batalhas, já que o serviço abrangeu o período de duas guerras mundiais.

“É impossível colocar em palavras o quanto eu senti a falta de vocês dois, da minha casa (…) não só desde que cheguei a este país, mas todos os dias desde que entrei para o Exército”, diz o militar David Taylor, em 1946, na mensagem destinada à mulher Clarice e filho Graham, num disco que partiu do Reino Unido, mas cujo destino é desconhecido. “Parece que já tem muito tempo desde quando eu era um civil despreocupado vivendo uma vida tranquila, mas muito feliz; e o retorno àqueles dias não ocorrerá nem tão cedo”, diz num tom melancólico.

Em outros momentos, falavam como se estivessem bastante próximos: “Dorme, dorme, minha pequena, que já está tarde”, dizia uma voz feminina num disco que circulou pela Argentina em 1945.

Tecnologia superou mensagens faladas

O disco de gramofone do final do século XIX marcou o nascimento da indústria de gravação (musical) como a conhecemos hoje. E, paralelamente, havia uma cultura de gravação pessoal até a primeira metade do século XX, possível por meio tanto de equipamentos caseiros quanto em pequenas cabines.

– Para muitas pessoas representou o primeiro contato com a gravação de áudio, uma iniciação à cultura midiática da modernidade, e para os analfabetos a possibilidade de se corresponder – exemplificou Levin.

A moda acabou sumindo naturalmente por causa do avanço tecnológico. A chegada, por volta dos anos 1950, das fitas cassetes, que eram editáveis, substituiu os discos de gramofone, gravados em tempo real. Assim, o serviço e seus exemplares acabaram escondidos. Até agora.

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Flávia Milhorance, do Globo