Os desenhos não mudam a História, a única coisa que podem fazer é insinuar sorrisos. Com esta reflexão, o caricaturista Hermenegildo Sábat, destaque do humor gráfico argentino – que fez uma charge especialmente para O GLOBO – explica o papel da veia cômica na crise financeira do país, de novo às voltas com um calote da dívida pública. Desde que a queda de braço entre o governo Cristina Kirchner e os chamados “fundos abutres” tornou-se destaque nos meios de comunicação, humoristas como Sábat, de 81 anos e há mais de 40 anos chargista do jornal “Clarín”, e Nik, de 43 anos, principal representante da nova geração de caricaturistas e astro do “La Nación”, abordam um assunto complexo e incompreensível para muitos argentinos com criatividade. O “default de Cristina” virou musical em programas de TV, estampa de camisetas e piada nas redes sociais.
– As pessoas estão tremendo de medo. O dólar voltou a subir, a mesma história de sempre – diz Sábat.
Para ele, presidente da Academia Nacional de Jornalismo da Argentina, “os desenhos falam por si”. Seu trabalho e o de outros humoristas, afirma, não poderiam estar ausentes na nova tragédia econômica.
É uma maneira de tornar mais leve uma realidade pesada que, segundo Nik, “tem cada vez menos graça”. Até o fim de 2013, diz o desenhista, autor do famoso Gaturro, personagem de história em quadrinhos de sucesso na América Latina, os argentinos riam com mais facilidade da situação econômica. Hoje, opina, com a recessão instalada e confirmada até por dados do questionado Indec (o IBGE local), acusado de manipular estatísticas oficiais, “observar tudo com humor ficou bem mais difícil”.
– As pessoas se perguntam o que vai acontecer e a verdade é que ninguém sabe. Temos um governo imprevisível e isso provoca tensão – diz o desenhista.
Os personagens principais são a presidente e o veterano juiz de Nova York Thomas Griesa, encarregado do caso. Também aparecem os “abutres”, que compraram títulos da dívida após o calote de 2001, não aderiram às operações de reestruturação de 2005 e 2010, e via Justiça americana, pretendem recuperar 100% do valor dos papéis.
– O calote ainda não chegou ao povo, é uma coisa do mercado. Mas as pessoas sofrem com inflação, perda de empregos, alta do dólar. E suspeitam que o calote vai piorar isso – diz Nik.
Seu trabalho e o de muitos humoristas incomoda a Casa Rosada, que já protagonizou conflitos públicos com Sábat, acusado de golpista por Cristina. Para Nik, a atitude do governo é “ridícula”, porque “o humor, por natureza, é crítico”.
Não é fácil fazer humor com a economia argentina. Em 2001, o país viveu uma de suas piores crises, que ainda paira como um fantasma.
– Em 2001, tive de deixar de fazer humor político durante alguns anos, porque a sociedade não tolerava nada que se referisse a política ou economia. Não chegamos a esse nível, mas a situação está se deteriorando – afirma Nik.
Nas redes sociais, comentários engraçadinhos e ironias tentam suavizar o impacto do calote. O ministro da Economia, Axel Kicillof, virou Leonardo Di Caprio no filme “O bobo (em vez de lobo) de Wall Street”. O programa de TV “Jornalismo para todos”, de Jorge Lanata, fez um musical sobre o calote, utilizando a melodia de “We are the world”, de Michael Jackson e Lionel Richie, em que Cristina diz que “graças a Deus, não caímos no calote… tudo foi solucionado por Axel Kicillof”.
– Muitas vezes, por meio do humor, as pessoas entendem melhor a situação. Para quem não gosta de política, nem entende de economia, nosso trabalho é uma maneira de se informar – diz a atriz Fátima Florez, imitadora de Cristina no programa de Lanata.
Na versão da imitadora, Cristina minimiza todos os problemas:
– A presidente tenta fugir da realidade, e brincamos com isso.
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Quem são Nik e Sábat, destaques do humor gráfico argentino
O desenhista Cristian Dzwonik, mais conhecido como Nik, é o cartunista estrela do jornal “La Nación”e autor do personagem Gaturro, famoso em toda a América Latina e também na Espanha, França e Portugal. Nascido em 1971, Nik é hoje o principal representante da nova geração de caricaturistas argentinos. Seus trabalhos já foram premiados pela Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) e pela fundação Konex, na Argentina. Seu primeiro trabalho foi publicado aos 14 anos e aos 17 começou a trabalhar profissionalmente como humorista gráfico. Nik já publicou 50 livros, entre eles “Nik”, “O humor de Nik em La Nación” e “A coleção de Gaturro em 3 D”.
Hermegildo Sábat trabalha há mais de 40 anos no jornal “Clarín”, o mais importante da Argentina. Com 81 anos, Sábat é presidente da Academia Nacional de Jornalismo do país e uma eminência do humor gráfico nacional. Sábat, que este ano inaugurou a exposição “Borges e companhia” no Centro Cultural Recoleta, já protagonizou um conflito público com a Casa Rosada e chegou a ser chamado de “quasemafioso” pela presidente Cristina Kichner, em ato público, diante de cerca de 70 mil pessoas, em meados de 2008. Em plena guerra entre o Executivo e os produtores rurais que exigiam modificações no sistema de tributação e praticamente paralisaram o país durante quatro meses, o “Clarín” publicara uma caricatura da presidente com um esparadrapo na boca. Em entrevista ao GLOBO, Sábat disse que a imprensa nunca esteve tão pressionada como no governo Kirchner.
– (No governo militar) Cada um sabia o que fazia… estavam os ditadores e os rebeldes. No meio estava o resto. Podia passar uma bala por perto, sim, é verdade, mas os terrenos e atores estavam claros – afirmou. (J.F.)
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Janaína Figueiredo é correspondente do Globo em Buenos Aires