Eu ia fazer 38 anos de idade e já tinha mais de 21 de jornalismo quando comecei a fazer o Jornal Pessoal. Naquela primeira quinzena de setembro de 1987, quando circulou a primeira edição deste jornal, eu ainda tinha um pé na grande imprensa: continuava a ser correspondente em Belém de O Estado de S. Paulo, do qual me desliguei em 1989. Mas não tinha uma noção exata do caminho que ia trilhar.
O Jornal Pessoal foi pela primeira vez às bancas dois anos e meio depois da posse de José Sarney, o primeiro civil a chegar à presidência da república – ainda por eleição indireta – desde 1964. Não foi boa a moral da história que permitiu ao atual senador ser o coveiro da ditadura. A estrita regra legal devia impor a posse interina de Ulysses Guimarães, presidente da Câmara dos Deputados, e a realização de nova eleição. Sarney fora um dos grandes beneficiários da ditadura, abandonando os pruridos da Bossa Nova udenista, que virou cinzas logo depois do golpe. De toda maneira, voltávamos à democracia.
Tornei-me jornalista profissional dois anos depois do golpe que derrubou o presidente João Goulart. Desfrutávamos de uma liberdade progressiva em comparação com os momentos de selvageria imediatamente seguintes ao putsch. Em 1967 escrevi e editei um suplemento de oito páginas sobre o cinquentenário da revolução russa na edição dominical da já extinta A Província do Pará. Ninguém me incomodou.
Escrevi matérias críticas sobre o regime e até radicais do ponto de vista filosófico. Ironizei medalhões. Combinei reportagens sobre temas sociais incômodos com coluna cultural e o máximo de reação foi interna. Avançou-se em matéria de liberdade durante a presidência do marechal Castelo Branco até que o AI-5 desabou sobre nós com sua violência e intolerância.
Mas – surpresa! – houve patrões sensíveis e que não se deixaram intimidar por completo. Em muitos momentos de confronto com o já organizado “sistema” (ou “comunidade de informações”, ou ainda “bolsões radicais, mas sinceros”, entrincheirados nos labirintos e porões do regime de força, dos quais emergiam como seres malditos), o patrão ficou ao nosso lado, às vezes literalmente (quando alguém ia preso e tinha o chairman por companhia).
Com esses antecedentes, era de se esperar que o retorno à democracia dispensasse o jornalismo de combate da imprensa alternativa. Ela seria exatamente alternativa ao quê, se todas as informações estavam ao alcance e desaparecera a censura estatal? Sem a linearidade compulsória imposta pela ditadura e com a variedade das democracias, haveria lugar para tudo e todos, como a princípio se supôs, naquele momento inicial de embriaguês democrática.
Daí o projeto do JP ser radical, fruto de tantas experiências na polaridade grande empresa/imprensa alternativa: uma só pessoa na redação (mais o meu irmão, Luiz, na ilustração e edição gráfica), administração metafísica e nada de publicidade, recusa total a anúncios. Opinião, o mais importante jornal alternativo pós-64, se apresentou ao distinto público se comprometendo a não ir além de 20% de espaço para a publicidade. Nunca teve problema a respeito: os anúncios chegaram a conta-gotas, bem abaixo dos tais 20%.
Mas Opinião tinha um mecenas. Era Fernando Gasparian, rara combinação de empresário e intelectual. Gasparian era ligado a João Goulart e à parte populista do poder. Amigo fraterno também de Rubens Paiva, assassinado pelos militares, cujo corpo até hoje tem destino ignorado oficialmente. Gasparian, também amigo de FHC, queria marcar seu protesto pelos crimes da ditadura e abrir caminho para uma publicação socialdemocrata, à maneira europeia. Queria também impressionar seus pares do mundo acadêmico. Dever e prazer, defesa da causa e vaidade, componentes característicos do mecenato.
Talvez a censura tivesse levado Opinião à total asfixia, sem qualquer possibilidade de sobreviver. Mas o conflito entre o dono e o principal editor do jornal antecipou esse desfecho. Raimundo Rodrigues Pereira podia ter sido mais tolerante às interferências do patrão e menos sectário, característica que ele levaria para seus projetos alternativos seguintes. Raimundo saiu e Opinião prosseguiu, agora mais ao gosto do dono. Tornou-se mais ensaístico e menos jornalístico. Continuou de leitura proveitosa, ainda que mais dirigido a intelectuais. Sem conseguir resolver a equação financeira, acabou por entregar os pontos.
Violência e intolerância
Aprendi com essas experiências que a veiculação de anúncios não é função direta da análise do retorno do investimento. A decisão é relativizada ideologicamente, no seu mais amplo significado. Em 1975 idealizei um projeto de imprensa alternativa ajustado a Belém, com o Bandeira 3. Havia espaço naquele momento para um jornal realmente alternativo, mas que pudesse se sustentar. Fui atrás de uma equipe, optei pelo melhor e mais moderno sistema gráfico da época, estabeleci periodicidade semanal e catei anúncios, não só através das agências como diretamente, em contato com amigos e conhecidos. Comparado aos jornais convencionais, o B3 se destacava – e não era radical. Podia encorpar a sociedade e ser-lhe útil.
No sétimo número o débito ganhava de goleada da anêmica receita, com perspectiva de se tornar impagável para mim (passei seis meses para zerar a conta em O Liberal, que imprimia o jornal em offset, uma revolução gráfica que chegou ao Brasil em 1972). Paguei a equipe, por um valor simbólico, mas sonante, e o jornal acabou.
Decidi que o Jornal Pessoal recusaria explicitamente anúncios, mesmo sabendo que 80% da receita de uma empresa jornalística vem da publicidade. Se havia incompatibilidade entre o meu projeto e o mercado, que fosse. Eu ia tentar vencer a inviabilidade econômica com o menor tamanho possível – do jornal e meu, ambos condenados à pobreza ou ao empobrecimento por sua própria razão de ser.
Mas como estávamos ingressando naquele que já é o mais longo período de democracia no Brasil, eu tinha esperança de que esse sacrifício seria temporário e duraria pouco. Logo descobri que essa se tornaria uma ilusão gravosa: a autocensura cresceu na companhia da covardia, enquanto os interesses corporativos e individuais se dissociavam do compromisso com a opinião pública. Crescia o volume de informações que não eram repassadas ao leitor. Menos por incompetência dos jornalistas e mais por automutilação, compensada por ganhos paralelos ou indiretos. A imprensa brasileira não parecia à altura do que a democracia lhe impunha. O que devia ser princípio, cláusula pétrea, virou elemento de troca, mercadoria.
O JP passou a ter um monopólio indesejado. Parecia que determinadas informações só ele poderia divulgá-las. Os assuntos perigosos, incômodos, inconvenientes, que passaram a constituir uma espécie de lata de lixo do cotidiano, entupida de verdades descartadas, de tabus e proibições. Era preciso que existisse uma publicação independente de verdade, ainda que sujeita a todas as deficiências e erros, sem o que a história da Amazônia (ou pelo menos a do Pará), construída sobre os fragmentos do cotidiano, não seria escrita ou teria uma escrita tendenciosa, parcial.
Durante certo tempo de vida o JP, com sua carência de recursos e as limitações que um trabalho solitário impõe, conseguiu acompanhar os acontecimentos do dia a dia como se fosse um órgão da imprensa convencional.
A partir de 1992 essa tarefa foi onerada crescentemente por uma enxurrada de processos judiciais, desencadeados por cinco ações propostas por uma das donas do grupo Liberal, sua diretora administrativa, Rosângela Maiorana Kzan.
Desde o início a litigância jamais foi olímpica. Sobre a tramitação dos processos e suas decisões influiu o peso das Organizações Romulo Maiorana, usado com ou sem autorização, mas nunca por acerto coletivo ou qualquer esboço de análise dos fundamentos das ações. Era a prática bem característica de certa elite brasileira do “eu quero, eu posso”. Essa ofensiva me desviou do meu trabalho jornalístico, exigindo dedicação quase obsessiva ao enredamento da perseguição.
Logo ela atraiu os personagens da maior grilagem de terras da história do Brasil (ou, talvez, do mundo), em torno do empresário Cecílio do Rego Almeida e das terras do Xingu: magistrados, “laranjas” e o próprio dono da Construtora C. R. Almeida usaram seu poderio para me atar a um novo rosário de incidentes forenses, que quase me sufocaram e por pouco não inviabilizaram o meu jornal e a mim mesmo.
A esta altura dos acontecimentos, os personagens contrariados pelo que devia ser um jornalismo corrente, não uma exceção extravagante, se acharam no direito de investir contra mim. A culminância desse ímpeto chegou à agressão pessoal, praticada por outro sócio do grupo Liberal, Ronaldo Maiorana. Gostaria que meus leitores apresentassem outro exemplo de Gulag judicial perpetrado contra um jornalista por outros jornalistas ou donos de jornal, que silenciam seus veículos de comunicação e se dão ao desplante de transformar o aparto estatal de justiça num apêndice para o exercício de suas veleidades e suscetibilidades.
Ao compromisso de não deixar que permanecessem em branco as páginas da história ao meu alcance juntou-se outra tarefa: não aceitar que a vontade deletéria de poderosos eventuais criasse moral de péssima recomendação para a vida pública. Eu tinha que resistir para relatar o que ocorre diante de mim nesse momento decisivo da história amazônica e também para resistir à força da violência e da intolerância. Em suma: testar até onde vai a democracia à brasileira, como queriam que ela fosse, adjetivamente ao seu gosto, os jovens turcos da ditadura militar.
Até quando?
Vinte e sete anos depois tenho consciência de que o Jornal Pessoal não devia mais existir. Não é justo tanto desgaste físico, emocional e profissional para um cidadão que vai fazer daqui a pouco 70 anos e, antes, meio século de jornalismo. É ainda mais injusto para com a Amazônia, que merecia ter a oportunidade de escapar ao destino colonial que seus algozes pretendem que esteja escrito nas estrelas. Não seria preciso fazer jornalismo alternativo para criar melhores condições históricas para a região. Há espaço suficiente para jornalismo sério e eficiente sem atritar irremediavelmente com os poderes constituídos. Mas essa convivência requer democracia para valer, não cenário falso, que não resiste à mais elementar verificação e teste.
A chegada aos 27 anos é uma façanha, independentemente da avaliação quanto ao conteúdo deste jornal. Ele continua a buscar a verdade de todas as formas possíveis, não aceita qualquer condicionante externa, vai até onde lhe permite sua limitada capacidade, permanece na rejeição absoluta à publicidade, não dispõe de mecenas (nem possui mais idade para acreditar em Papai Noel) e segue na sua tarefa impossível, mal começa a manhã, como no lindo poema de Carlos Drummond de Andrade.
Até quando, José? Infelizmente, é uma resposta que já não consigo mais dar. Espero que o leitor me ajude a acreditar que essa utopia (ou teimosia, o adjetivo está em aberto) seja possível – e valha a pena ser sonhada.
O Jornal Pessoal está entre mais admirados
O Jornal Pessoal aparece ao lado dos principais veículos de comunicação, que abrigam os 246 jornalistas mais admirados do Brasil, segundo lista elaborada com base em consulta a dois mil executivos de comunicação corporativa de todo país, agências de propaganda e empresas públicas e privadas. Os responsáveis pela iniciativa indicaram a esse colégio eleitoral seleto os nomes de 705 jornalistas. Desse total, podendo votar até cinco vezes, esses empresários selecionaram 246 nomes, dentre os quais estou incluído, o único jornalista admirado em toda a Amazônia.
No dia 28 começou a segunda e última etapa, quando serão eleitos os 100 jornalistas que esses eleitores mais admiram. A votação irá até o dia 15, segundo projeto idealizado por Eduardo Ribeiro, diretor do site Jornalistas & Cia, um dos mais influentes do setor. Ele contou com o respaldo técnico da Maxpress.
Eduardo disse que um dos principais objetivos, que era o de valorizar também os colegas que atuam na retaguarda dos veículos de comunicação, foi atingido: “A lista contempla pauteiros, repórteres, blogueiros, editores, âncoras, colunistas, comentaristas, chefias, enfim, praticamente todo o espectro do jornalismo e de todas as plataformas”. Receberam votos profissionais de jornal, revista, rádio, televisão (aberta e paga) e internet.
Decio Paes Manso, da Maxpress, ao fazer o anúncio, destacou “o espírito da admiração, respeito, estima e consideração profissional”, que se manifestou “de forma marcante, como ficou patente pelo alto índice de participação da comunidade da comunicação corporativa, na indicação dos jornalistas”.
Os 100 nomes que obtiverem as maiores pontuações, na soma das duas etapas, serão anunciados como Os cem mais admirados jornalistas brasileiros, na edição especial do dia 24, que assinalará os 19 anos de Jornalistas&Cia e os 23 anos da Maxpress.
Com novo blog, ao bom combate
Criei um blog, o http://lucioflaviopinto.wordpress.com/, através do qual pretendo ter uma participação diária nos acontecimentos. Escrevi o texto abaixo no dia 27 para servir de convite à participação dos leitores. Mais até do que na versão impressa, a interatividade com o leitor será decisiva no formato na internet.
As padarias são uma genuína e honrosa instituição brasileira. Existem em raros lugares do mundo, os mesmos raros lugares onde se pode tomar um café da manhã com a qualidade que se tem nas padarias nacionais. Exerço esse privilégio sempre que posso, aqui ou em santuários dessa arte, como São Paulo.
Hoje ia pagar o café da manhã na padaria que frequento, perto de casa. Não muito organizada, ela é palco de duas filas paralelas. Uma é a dos que esperam seu pão de cada dia. É a mais lenta e numerosa. A outra é dos que tomaram ali mesmo o seu café e não precisam mais esperar por atendimento. Vão direto ao caixa.
No momento em que ia pagar, um cidadão jovem e cheio de músculos, com traje de atleta e “bombado”, enfiou seu braço hercúleo sobre a minha cabeça com o dinheiro e o saco de pão. Quis explicar-lhe que a vez era minha (sem falar na minha condição de sexagenário, que costumo esquecer). Antes de qualquer ensaio de entendimento (ou desentendimento), ele apresentou suas armas:
– É, sou mesmo arrogante.
E estava apresentado.
Na fração de segundos que se seguiu a esse matutino gesto de selvageria, que, a princípio, me sugeriu como resposta o palavrão de intensidade proporcional à indignação, só consegui dizer um “nem precisava dizer isso, já se vê”.
Acho que o atleta nem ouviu. Deu meia volta e saiu a passos largos. Se tivesse ouvido, talvez me tivesse agredido.
Por que tanta agressividade na manhã que mal começava, sem a mais remota justificativa de provocação?
Tenho um sonho recorrente. Nele, sou morto por um pivete. Depois de me assaltar, ele levanta a arma para atirar em mim. Tento lhe dizer que sou um jornalista, que me empenho na defesa da causa pública e que tento contribuir contra a pobreza e a violência. Não consigo. Ele atira antes. E morro. Morro assim em todos os sonhos com essa história. Bestamente.
Incidentes desse tipo, em que fui inadvertido coadjuvante de um boçal na padaria, se repetem infinitamente em todos os lugares, aqui e agora, em antes e sempre. O que choca é a frequência cada vez maior, rotineira – banalizada, como hoje de diz, banalmente. Se se vive por uma causa, espera-se morrer por ela, por ser de justiça. Mas realizar a vida inteira uma missão e ser executado de forma sórdida anula a razão de ter vivido e tira a glória da morte. Este é o meu maior temor.
Já fui agredido, ameaçado de agressão e ofendido por ser quem sou e fazer o que faço. Nunca é saudável, sequer aceitável, estar em situação assim. Mas, como adverte o povo, quem sai na chuva se molha. Em quase meio século de vida profissional, tenho passado por temporais exasperadores. No entanto, continuo meu caminho, tentando me proteger e prevenir novos ataques, mas sem renunciar ao que considero meu dever (e meu direito).
Outra coisa é ser surpreendido por alguém que, não tendo o menor apreço pela vida, nos agride num contexto no qual estamos não só despreparados como impotentes para qualquer reação. Nas grandes cidades, viver se tornou uma roleta russa, um imponderável absoluto. Na origem dessa situação estão muitos fatores.
Um deles tem dimensão coletiva: a impunidade de uns, os privilégios de outros, o poder monstruosamente concentrado por poucos, a desinformação que acarreta a inércia, a omissão, a alienação e o desencanto pela vida e a história.
O episódio de hoje me fez decidir criar de vez este blog, que chega assim de súbito, de improviso, como dever e destino, empenhado em fortalecer a agenda do cidadão, do homem comum, da gente simples e de todos aqueles que querem ser personagens ativos da sua vida e da história.
Fazer história
Espero alimentar diariamente este blog. Não com ênfase nas novidades, nas informações exclusivas, no “furo”. O que mais se tentará aqui será a contextualização dos fatos novos, no exame da mecânica dos acontecimentos, na desmontagem das engrenagens das decisões, na revelação do que está oculto na cena ou é omitido pelos seus narradores. Para que cada um de nós tenha a oportunidade de imprimir sua marca pessoal neste imenso livro no qual costumam ser confinados os fatos decisivos para todos e monopólio de uns raros.
Particularmente em relação à Amazônia, este blog, prosseguindo o meu jornalismo pessoal, o objetivo é combater o “destino manifesto” que se impõe à região, de ser colônia, de não interferir no seu próprio destino. Acredito com firmeza que a história não está escrita nas estrelas, restando-nos contemplá-las, à distância, como acidentes da natureza.
Creio que podemos escrever também a história e, nessa escrita, sair da trilha dos colonizadores e da camisa de força em que nos colocaram os dominadores.
Para isso, é preciso saber o que acontece e como fazer acontecer. Espero que este blog contribua para o livre arbítrio do manipulado cidadão amazônida.
Ao bom combate, pois.
A messe é grande, mas enfrentá-la nos pode retribuir com o que é mais nobre e humano nas nossas vidas: fazer uma história que nos sirva, honre, enriqueça e nos faça feliz.
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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal; seu blog