Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Capa que fala muito, mas pode não ouvir nada

O recente depoimento do ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa tem potencial para ganhar o mesmo espaço que a entrevista de Roberto Jefferson teve em junho de 2005, quando trouxe à tona o esquema do “mensalão”. Nos últimos dias, as editorias políticas dos principais jornais e revistas do país têm dado um espaço considerável à lista de nomes trazidos por ele como beneficiários de “doações” por parte de empresas que possuem contratos com a Petrobras.

A capa da edição corrente da revista Veja (edição 2390, de 10/9/2014) mostra bem o tom que se pode dar a esta denúncia. A capa está literalmente demonizando o personagem central da semana e, com ele, seus principais beneficiários do novo esquema de propinas da República, já chamado de “petrolão” na coluna de Reinaldo Azevedo, na Veja.com.

Trata-se de uma capa que fala muito em si mesma. Seu objetivo é o impacto, o mais profundo possível. Chama a atenção para a lista de “nomes” de envolvidos, rememora o episódio da compra da refinaria de Pasadena e, ao dizer que “o dinheiro sustentava a base aliada do PT no Congresso”, nos convida a rememorar o escândalo-mor da República, o escândalo do Mensalão, baseado justamente na “compra” de votos da base aliada.

Mas a chamada principal foi o que mais se destacou. A frase “O delator fala” me colocou em contato direto com um fenômeno que está acontecendo nas redes sociais. Uma avalanche de mensagens de que a candidata Dilma Rousseff não poderia dizer que “não sabia” do caso. O próprio Aécio Neves já fez este alerta. A frase-manchete de Veja, então, me parece uma convocação a que a presidente se posicione: sabia ou não sabia?

“Buraco” não devidamente tapado

Isso nos mostra o quanto o “eu não sabia” se transformou num fantasma que assombra a política nacional. Ora, o “eu não sabia” é uma criação de Lula. Foi uma das heranças “midiáticas” do escândalo do mensalão e sempre o coloco como um belo exemplo do chamado “discurso do cínico” tão em moda na atualidade da vida política. É este “discurso do cínico” que, por exemplo, faz com que um escândalo possa ser tão pouco escandaloso a ponto de fazer prevalecer a crença de que, ao final, tudo acabe em pizza e que só reste a equação: “Eu sei que ele sabe que eu sei.”

O grande trunfo de um escândalo é sempre a “confissão”. É isso que o transforma em algo verdadeiramente devastador. Em 2005, quando a Veja trouxe a denúncia de corrupção nos Correios, inaugurou-se o que chamamos de “pré-escândalo” (conforme a terminologia de John Thompson). Só com a entrevista de Roberto Jefferson (6 de junho) e sua “confissão” surge a fase do “escândalo propriamente dito”. Mas sempre faltou algo: o ex-presidente Lula nunca admitiu. E era dele que sempre se esperou uma “confissão”.

É da confissão que todos precisam. O reverendo Eymerich, no Manual dos Inquisidores (1376), já nos dizia da importância da “confissão”. Enquanto o segredo não se tornar transparente, o culpado ainda não se sente devassado pelo olhar do outro que o acusa. Neste aspecto, Lula foi e é resistente! Jamais admitiu e, mesmo quando vacilou numa quase admissão de culpa, logo reagiu com um discurso contrário, mostrando a habilidade necessária para sobreviver às intensas acusações e investigações midiáticas.

O “eu não sabia” do ex-presidente Lula, portanto, virou não somente um dos grandes lemas, mas a grande “incógnita” do escândalo do mensalão. É aquele “buraco” que ainda não foi devidamente tapado, aquela “falta” que nos lembra de algo incompleto, que não cicatrizou. Por isso o ex-presidente Lula, por seu lado, sempre aposta em que “a história mostrará a verdade”, frase que repete constantemente quando questionado.

“Eu não sabia”, parte II

Se “sabia”, ou não, das ações escandalosas, não interessa neste momento. Aliás, qual o lugar da verdade em um escândalo? O fato é que este exemplo nos mostra que o “discurso do cínico” brota de uma incapacidade de admissão, de esconder-se no segredo, na não revelação, no não reconhecimento da culpa. Ter algo a esconder, e manter escondido, é próprio do “cinismo”. Não à toa o “discurso do cínico” toma como uma avalanche os discursos midiático e político, espaços privilegiados da linguagem e do discurso. É o “discurso do cínico” que, pensando de uma forma mais ampla, nos aparece como a expressão maior de uma época em que a “ética da malandragem” instaura e legitima, como nunca, a ordem dos “espertos” e do “jeitinho”. O “eu não sabia”, vindo de quem quer que seja, pode não ser simplesmente uma “negação”, mas a entrada, definitiva, no “discurso do cínico”. E nossa época está repleta disso!

Como nos diz, de forma incisiva, o psicanalista Ricardo Goldenberg (No Círculo Cínico, ed. Relume Dumará, 2002), o homem moral de Kant está obsoleto, é um “otário” e quase ninguém mais quer habitar sua moradia. Rejeitamos a internalização da Lei e das Regras e a substituímos pela fé cega de que há sempre um “jeito” de sermos uma “exceção”. O que vivemos, então, é uma tremenda crise do superego e nenhum modelo vinculado às leis e regras parecem ser suficientes para determinar nossa subjetividade e domar nossos desejos.

Vivemos em uma época em que o cinismo se transformou na caricatura da moral Iluminista evidenciando sua possível falência, pois estamos sempre invocando normas universais e, ao mesmo tempo, promovendo sua transgressão. Como nos diz Goldenberg, “o cinismo consiste no conjunto de operações que preservam oculto o hiato entre os princípios e a prática que os contradiz”.

Os canalhas se deleitam em nossa época. Todos, imersos em culpa, não a reconhecem e levantam os punhos afrontando a justiça e a todos. Superar esta “ética” talvez seja um dos grandes desafios para o avanço de nossa cidadania.

Teremos um “eu não sabia”, parte II? Provavelmente sim. A “confissão” não faz parte de nossa cultura. Convivemos muito melhor com o cinismo, lugar onde nos refugiamos quando nossa honra não pode vir à tona!

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José Henrique P. e Silva é cientista político e psicanalista