Em outubro de 1975, com apenas 19 anos, a repórter-fotográfica Elvira Alegre foi a única pessoa a registrar o velório do jornalista Vladimir Herzog. Vlado foi torturado e assassinado na sede do DOI-Codi de São Paulo. Na época, o Exército informou que Herzog se enforcara, mas seus familiares e amigos não aceitaram a versão. O velório e o sepultamento transcorreram sob clima tenso.
Eu me tornei repórter-fotográfica por acaso. Era final de 1974, morava em Londrina (PR) e estudava para o vestibular de medicina. Mas uma colega disse que havia vaga para estagiários em um jornal novo na cidade, e fui ver o que era.
Tratava-se do Panorama. Gostei daquele mundo.
Foram contratados Narciso Kalili, Mylton Severiano da Silva, Hamilton Almeida Filho. Perguntaram o que eu queria fazer.
Respondi, do nada, que pretendia fotografar.
Me deram filme e máquina e mandaram que fosse para a rua fazer um teste. Fui aprovada. Era um mundo encantador. Logo comecei a namorar o Hamilton.
Passei a trabalhar, cumprir pautas. Ficava até a madrugada no jornal esperando a impressão para ver no papel o que havíamos produzido.
Enquanto isso, meu pai pensava que eu estudava na casa de uma amiga. Quando soube, ficou aborrecido.
Pouco depois, Narciso e Mylton foram demitidos. Vários jornalistas pediram demissão em solidariedade, inclusive Hamilton e eu.
Fomos morar em São Paulo, onde boa parte desse pessoal voltou a tocar o jornal ex-, que já produziam antes da aventura em Londrina.
Mylton, Hamilton e eu fomos morar na casa do jornalista Paulo Patarra. Eu não conhecia o [Vlado] Herzog [no Brasil, o jornalista adotou o prenome “Vladimir”, por considerar que Vlado era muito exótico]. Quem o conhecia bem era o Mylton. E foi ele que atendeu o telefone na madrugada de 26 de outubro, um domingo.
Mataram o Vlado
Era um funcionário da TV Cultura: “Mataram o Vlado”.
Foi um choque. Afinal, era um jornalista que havia sido morto pelo Estado. Decidimos que o [jornal] ex- faria a cobertura do velório e do sepultamento. Na segunda-feira bem cedo fomos para o velório no hospital Albert Einstein. Quando chegamos, o corpo estava lá, no caixão fechado. O clima era pesadíssimo.
Hamilton me encorajou, disse que não era para ter medo. “Põe a máquina na cara e fotografa”, foram as palavras dele. Eu tive medo, mas tinha 19 anos, não sabia a dimensão do perigo. Fotografar aquilo não era prudente, tanto que ninguém mais o fez.
Várias fotos se tornaram emblemáticas. Uma das mais famosas é a de Audálio Dantas, então presidente do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo, diante do caixão.
Ele chegou, parou, tinha um lenço no lugar do quipá, e eu fiz a foto. Ela mostra a impotência diante do absurdo que aconteceu.
Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo, eu também fotografei diante do caixão, compenetrado, em absoluto silêncio.
Testemunhei o desespero de Clarice, mulher do Vlado, a tristeza de dona Zora, mãe dele. Tudo era muito tenso.
No cemitério havia mais gente filmando. Não era possível saber quem era jornalista ou agente da ditadura.
Vlado era judeu, e o fato de ser sepultado no centro do cemitério, e não em áreas marginais, como determina o judaísmo para suicidas, era o grito definitivo de que ele havia sido assassinado.
Quando tudo terminou, eu passei mal. Pensamos que era por causa da tensão, do calor. Mas alguns dias depois eu soube que estava grávida.
Sem fotos
O ex- com a matéria sobre a morte de Herzog, sem passar pela censura, foi para as bancas sem minhas fotos. Cheguei a ampliar algumas, mas o pessoal tinha pressa, e por isso não usaram. Os 50 mil exemplares foram vendidos, e saiu uma edição extra.
Dias depois, decidimos abandonar a Redação. Era certo que a polícia iria aparecer. Peguei o filme com as fotos. A polícia realmente apareceu e empastelou [danificou] tudo.
Na sequência, trabalhei no [jornal] Aqui São Paulo, com o Samuel Wainer, e na televisão.
Em 1984, voltei a Londrina. Em 25 de outubro de 1985, eu estava no laboratório de fotografia da Folha de Londrina quando um colega veio me mostrar um exemplar da Folha de S.Paulo com aquela foto do Audálio diante do caixão do Vlado.
A legenda dizia que a foto era de minha autoria e tinha ficado inédita por dez anos.
Acontece que o também jornalista Dácio Nitrini, que trabalhara comigo no ex-, guardou uma daquelas fotos que eu havia ampliado. Como estava trabalhando na Folha, ele a publicou. Daí em diante, essa foto foi publicada no mundo inteiro.
Nunca ganhei um tostão com as fotos do Vlado.
Recentemente, doei todas para o Instituto Vladimir Herzog, com a única exigência de que, quando se publique a foto também se conte o contexto em que foram feitas. Eu tive a sorte de estar lá. E também tive coragem.
Foi a partir do Vlado que começou a abertura [política] no país. Acho que demoraria mais sem a história dele. Eu estava lá, sou memória viva.