Em artigo de minha autoria publicado neste Observatório (ver “O brado de Marina“), questionei a situação de Marina Silva (PSB) nas eleições presidenciais deste ano. O norte da argumentação remetia às manifestações de junho de 2013, levando em conta que tais manifestações, de alguma forma, representaram mais gritos da sociedade brasileira do que efetivamente uma consistência programática em termos políticos, caracterizada fundamentalmente pela inexistência de uma liderança suficientemente forte a ponto de canalizar as demandas apresentadas pelo povo para o interior da política. A situação ainda foi comparada por mim com o caso do Chile e da gigantesca renovação promovida pelo nosso quase vizinho latino-americano, em que das manifestações estudantis, vigorosas e constantes nos últimos anos, notou-se uma relevante renovação do quadro legislativo nas eleições de 2013. A partir de alguns dos jovens que estavam nas ruas emergiram novos nomes para a política chilena, tidos como capazes de conduzir uma renovação de sua situação.
No caso brasileiro, os meios de comunicação teriam a sua responsabilidade em fazer com que a coisa chegasse a este ponto em virtude da maneira como veiculam as notícias políticas, identificando-as de forma quase exclusiva à notícia sobre corrupção. Destarte, não ergueram qualquer contraponto à forma como a política deve ser percebida e muito menos ajudaram em algum tipo de cobrança no que tange à possibilidade de fortalecimento dos canais de representação. Assim, a política passa a ser vista sob o ângulo da corrupção e, igualmente, da grande provedora de direitos sociais tendo, então, a “população que disputar com os políticos” tais direitos sociais. Desse modo se configuram as manifestações de junho de 2013.
Enfim, quando escrevi “O brado de Marina” o intuito era o de chamar a atenção para o fato de que existia um grito na sociedade brasileira, manifestado fundamentalmente por meio da arguição quanto aos direitos sociais – a tônica das manifestações. O grito da sociedade transformou-se em espasmo a partir do momento em que se encontrou diante da modernização, de um Brasil diferente, capaz de apresentar muitas coisas novas, as benesses da industrialização, como o acesso a bens de consumo, cobrando, todavia, um alto preço. Logo, as manifestações cedo foram identificadas com a ideia de reivindicação de direitos sociais, como o direito de ir e vir mediante a utilização de transportes públicos de qualidade e com preço equivalente a esta qualidade e, igualmente, direito a uma melhor educação – este ponto fortemente contrastado com os investimentos feitos pelo Estado na Copa do Mundo, criando-se o slogan de “Padrão Fifa” para a educação. Finalmente, o Brasil sabia o que queria, sabia do que necessitava, mas não sabia como pedir e muito menos concentrar as reivindicações de maneira a garantir a sua coerência. Na dúvida, passa a pedir gritando por todos os lados, com a esperança de alguém ouvir.
Começar de novo
Marina representava, de alguma maneira, a continuidade deste grito. Enquanto uma forma de manifestação, incorporava o desejo pela mudança, de uma inserção justa e segura neste Brasil moderno, transformado pela industrialização e crescente urbanização. Mas, como em junho de 2013, não tinha direção quanto ao que apresenta, mostrando-se incapaz de canalizar com segurança e definir de forma rígida um programa. Reflexos da inexistência de lideranças das Jornadas de Junho. Marina, portanto, representava um verdadeiro espasmo da sociedade e, enquanto espasmo, tem grande validade como diagnóstico, sem, contudo, representar algo efetivo e sólido. Era incapaz de conseguir manter um diálogo consistente com os setores diretamente envolvidos na modernização brasileira, empresários e demais grupos de interesses presentes na política. Logo, uma vez eleita, poderia efetivamente configurar um perigo.
Em junho de 2013 o grito passou. Ecoou durante alguns dias, principalmente nos grandes centos urbanos. Mas, logo, passou. Ao longo das eleições, ameaçou manifestar-se de forma contundente através de Marina Silva, detentora do carisma weberiano do gigantesco e burocratizado sistema político brasileiro. Mas, notou-se que ao seu carisma não correspondia uma liderança e, fundamentalmente, a necessária tutela para a sociedade brasileira, principalmente no que se refere aos direitos sociais. Aliás, nota-se a preferência pela segurança do modelo de política lançado pelo PT nos anos 2000, cujo acesso aos direitos sociais e a consequente participação no Brasil moderno, a coleta de seus frutos, está mais garantida – ainda que isso signifique sacrificar possibilidades de construir sólidos canais de representação política. Marina, por sua vez, não tinha nada a oferecer. Ou, se tinha, não havia segurança suficiente para segui-la. Ou, se havia, era desprovida de efetividade política, de forma a adquirir consistência. À medida que a campanha evoluía, isso ficou claro.
Indo direto aos fatos, este é o tipo de raciocínio que não se encontra, ou não é proporcionado, pelas pesquisas. Elas estão aí e estiveram presentes durante todo o primeiro turno. Ninguém contestava uma segunda rodada puramente feminina. Mas, para ela acontecer, aqueles setores sociais que adquiriram grande parte dos seus direitos sociais nos últimos anos teriam de se arriscar mais do que gostariam e o brasileiro, definitivamente, nunca gostou de trocar o certo pelo duvidoso. Em Aécio Neves votam exatamente aqueles que não são imediatamente dependentes do grande aparato social proporcionado pelo Estado brasileiro, sua rede de direitos de ingresso ao Brasil moderno. Alguns deles também bradaram em junho de 2013 – estimulados principalmente pelos escândalos de corrupção. Bradaram igualmente ao longo da campanha e ameaçaram votar na candidata do PSB. Mas, pela mesma lógica, viram a insuficiência de uma eventual gestão sua.
Enfim, o espasmo Marina Silva transforma-se em um suspiro. Mas está longe de ser um suspiro agonizante. Acredito, em um futuro muito breve, em novos gritos. E, novamente, sem os reforços dos canais de representação política, sem uma grande mídia suficientemente forte e questionadora – capaz de criticar de forma reflexivamente contributiva exercendo a sua possibilidade de construção de opiniões consolidadas – novos gritos serão dados para todos os lados, para todas as direções. Ninguém aparecerá para captá-los e direcioná-los para um sentido específico. Provavelmente, será algo barulhento, mas, definitivamente, nada que não terminará com um leve suspiro de cansaço, quase uma verdadeira massagem de diafragma de alguém que busca apenas tomar fôlego para começar tudo de novo. E, enquanto isso, a política se burocratiza, se autonomiza, fechando-se, criando uma espécie de isolamento do restante da sociedade.
Em tempo
Ao lerem meus textos, algumas pessoas me questionaram sobre a validade das manifestações de junho de 2013. Pensam, erradamente, que sou contrário a elas. Na verdade, sou extremamente a favor e acredito no quão saudável é para o próprio Brasil existir movimentos como este. Faz-nos lembrar que temos uma sociedade civil e, portanto, potencial para a participação efetivamente política. Todavia, o grande problema está no fato de não existir no Brasil consistência nos canais de representação política, garantindo a possibilidade de diálogo entre alguns dos principais partidos e as manifestações. Ao se pensar nas Jornadas de Junho, o mais interessante é demonstrar como efetivamente a esquerda brasileira perdeu espaço em sua manifestação política, pois, tradicionalmente, a rua era o local utilizado pela esquerda para esta manifestação. Quando, em manifestações como vimos no Brasil, se tem a negação de qualquer partido político, até mesmo os mais à esquerda, tem-se a derrota do próprio sistema político e a sua inapetência refletida na sociedade. Assim, acho que as manifestações devem existir, mas, sobretudo, creio na necessária reformulação do sistema político brasileiro, de forma a garantir que eventos como as Jornadas de Junho possam contribuir para a consolidação do nosso sistema democrático. Para tanto, há de se ter uma transformação interna, no próprio sistema, de forma a possibilitar a criação de canais de diálogo com a sociedade.
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Faustino da Rocha Rodrigues é jornalista e professor