Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A publicidade e a hipocrisia da sociedade

Há alguns anos fui convidado para dar uma entrevista numa revista conhecida. O fotógrafo, também super conhecido, chegou na minha casa e disse que o editor pediu a ele fotos do tipo “Molico”. O circo foi armado e estou convencido que foram as fotos mais lindas que já fizeram de mim. Nunca mais me esqueci disso. Primeiro, porque tenho fotos maravilhosas comigo. Segundo, porque eles fizeram de tudo para construir uma imagem muito mais fantasiosa do que a realidade entregava. Essa história me veio à mente quando li a matéria no Meio&Mensagem comentando uma pesquisa que concluiu que a população brasileira não está preparada para aceitar o homossexualismo na publicidade. Ambas as situações, apesar de serem bem diferentes, demonstram o quanto a publicidade nos leva para um mundo fora da realidade.

Apesar de ser uma conversa sempre polêmica, a verdade é que, na maioria das vezes, a publicidade cria uma realidade inexistente, “vende” sonhos e universos que não existem. Pior mesmo é quando ela fecha os olhos para a realidade e ignora determinadas transformações na sociedade. Um colega meu, há pouco tempo, disse uma frase de impacto numa conversa que tivemos sobre o nosso dia a dia em marketing: “A publicidade espelha a hipocrisia da sociedade”. Achei a frase dura, até injusta, mas me tocou e ainda estou pensando nela até agora.

Um estudo recente da JW Thompson revelou que 80% da população brasileira concorda que mostrar casais do mesmo sexo em anúncios reflete a realidade da nossa sociedade hoje. A pesquisa aponta que 77% dos entrevistados não se importam se os protagonistas de mensagens publicitárias são heterossexuais ou gays, e que 68% das pessoas garantem que a presença de casais do mesmo sexo não mudaria a sua decisão de compra do produto anunciado.

Por outro lado, o preconceito aparece forte quando 75% dos entrevistados dizem não se incomodar com a presença de gays na publicidade mas acreditam que muitos outros não iriam gostar. Acho incrível quando 48% dizem não entender a necessidade das marcas mostrarem casais gays em anúncio, e que 36% opinam que anúncios na TV não são lugar para casais do mesmo sexo.

Em resumo: o preconceito surge evidente quando se questiona sobre o incômodo percebido em outras pessoas, que não os respondentes. A população brasileira não está preparada para aceitar casais homossexuais na publicidade. Ponto! A nossa sociedade é preconceituosa e hipócrita, e, infelizmente, nós refletimos isso na publicidade. Até porque uma publicidade mais de vanguarda que adote gays em seus anúncios poderá ter um entendimento equivocado, já que, segundo a pesquisa, 47% da população dizem que marcas que mostram casais do mesmo sexo só querem criar polêmica. Vale lembrar que, quase duas décadas atrás, a Ikea lançou um comercial na TV tradicional norte-americana com um casal gay, o que provocou indignação entre grupos conservadores e uma ameaça de bomba em uma loja. Parece que pouco evoluímos desde então. Vida complicada essa.

Poder transformador

Obviamente que existem contribuições formidáveis da publicidade, como por exemplo o projeto “Retratos da Real Beleza“ criado pela Ogilvy para a Dove. A publicidade foi muito além do seu papel e gerou uma reflexão a respeito da beleza feminina. Aliás, o compromisso com o tema é antigo, afinal já se passaram dez anos desde que Dove, da Unilever, lançou o conceito “Campanha pela Real Beleza“. Esse é um exemplo inquestionável de como a publicidade, coerente e consistente, pode contribuir construtivamente para criar algo significativo e transformador. Sejamos justos aqui: nem sempre é possível exigir uma publicidade transformadora, até porque marquetear o quilo de tomate por 1 real não provoca nenhum impacto, a não ser a motivação de fazer uma macarronada mais molhadinha.

Por outro lado, o caso mais assustador e perverso que me vem à mente é a máquina propagandista desenvolvida pelo nazismo alemão, onde foi criada uma imagem quase messiânica de Hitler, com estratégias modernas e complexas de marketing, possibilitando o engajamento do povo alemão, uma devoção incondicional ao Führer e uma admiração surpreendente à causa nazista. O exemplo não é de publicidade e sim de marketing, que foi tão intenso e eficiente que atingiu todos os níveis da sociedade alemã, perpetuando os famosos 11 princípios da propaganda de Joseph Goebbels, o cérebro desta máquina e um dos braços direitos de Hitler. Enfim, apesar de considerar este episódio como uma exceção extrema, ele não pode ser esquecido.

Marqueteiros dirão que a publicidade faz as pessoas sonharem e viajarem para mundos que elas aspiram. Concordo, acho que é válido, mas existe um lado hipócrita que é vender algo que nunca será alcançado, um sonho impossível, quase sempre inserido num mundo irreal. Será que a publicidade deve mostrar um mundo politicamente correto quando o mundo real é cheio de conflitos, imperfeições e preconceitos? Em épocas passadas, a inclusão de negros, mulheres trabalhando e beijos na boca na publicidade eram tabu. “O primeiro sutiã a gente nunca esquece”, de 1987, foi polêmico, mas abriu caminho pois mostrou sensualidade sem vulgaridade. A discussão da inclusão de gays na publicidade atual segue o mesmo caminho do preconceito e da sociedade delirante em aceitar a sua própria evolução. Não é uma discussão simples pois toca elementos conectados com religião, política, cultura, valores e ética.

Não quero ser Poliana e falar de uma publicidade icônica e repleta de idealismo. Não é isso. Porém, a publicidade tem um papel importante na formação da sociedade em que vivemos, nos nossos papéis de consumidor e cidadão. Um exemplo claro dessa missão é o momento que vivemos hoje nas eleições governamentais de 2014, onde o marketing vem sendo protagonista no processo eleitoral. Não foi por acaso que nosso colega Adilson Xavier escreveu uma matéria de reflexão e desabafo chamada “O Marketing da Bandidagem“, refletindo se o marketing político que temos hoje em dia realmente ajuda a melhorar o nosso País.

Será que a publicidade que fazemos tem realmente compromisso com a verdade? Será que o único objetivo da publicidade é vender determinado produto ou eleger determinado candidato? Existe compromisso de fato em fazermos uma publicidade ética e responsável? A publicidade deve espelhar a hipocrisia e o preconceito existente na nossa sociedade ou deve combatê-la? Será que ela deve refletir a sociedade atual ou deve estar à frente do tempo?

Não podemos negligenciar o poder transformador que a publicidade provoca em nossa sociedade, ainda mais em tempo de hiperconectividade e transparência total. Mas é fácil reconhecer que o marketing pode ajudar e mudar o rumo do desenvolvimento da sociedade.

Nunca a publicidade foi tão impactante como agora. Por isso, a responsabilidade aumenta e merece reflexão.

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Mauro Segura é executivo de marketing, autor do blog A Quinta Onda