Quando escolhi fazer Jornalismo, aos 17 anos de idade, ainda cursava o técnico de Publicidade e Propaganda. Desde cedo vi que comunicação era a minha praia. Sempre gostei do processo envolvendo o ato de alguém passar uma ideia a outra pessoa, sob as mais diferentes formas – texto, imagem, ilustração, jingle e por aí vai. Só que como tinha mais facilidade com texto do que com desenho para montar um layout, por exemplo, vi que em vez de Publicidade meu caminho era o Jornalismo.
A eleição presidencial deste ano, no entanto, me fez repensar sobre a escolha da profissão. Não por mim mesma, pela forma como desenvolvo meu trabalho, mas pelo jornalismo brasileiro em si. Nunca senti tanta vergonha da minha profissão quanto neste outubro de 2014.
Colegas de profissão, de esquerda ou de direita, petistas ou tucanos (estes podem não admitir publicamente, mas em seu íntimo concordarão), sabem do que estou falando, por isso dedico este texto principalmente a quem não é da área, para que passe a acompanhar os veículos de comunicação com um novo olhar.
Desde junho de 2013, o clima ficou desfavorável ao Partido dos Trabalhadores. Os protestos de rua, originados pelo Movimento Passe Livre, na capital de São Paulo, depois da violência da Polícia Militar para tentar reprimir as manifestações (o desgaste maior recairia sobre o governador, pela responsabilidade do transporte público), ganharam a adesão de mais e mais pessoas e passaram a se espalhar por outras cidades de São Paulo e pelo país. Naquela massa de manifestantes, porém, via-se protesto contra tudo: Copa do Mundo, corrupção, partidos políticos e todo um leque de reivindicações de cunho local ou nacional.
O cabo eleitoral da direita
Vi naquelas manifestações uma espécie de histeria coletiva (sei que vários amigos participaram e podem não gostar desse ponto da minha análise, mas é o que penso e nunca escondi isso de ninguém), com um sem-número de pessoas indo às ruas sem saber exatamente por qual motivo. Uma espécie de manada seguindo palavras de ordem vazias, sem propostas concretas como pano de fundo. Ainda assim, julguei legítimo que o povo fosse às ruas, mas desde o início sabia que os protestos não afetariam o Congresso Nacional, a quem deveríamos endereçar a cobrança pelas reformas política e tributária, por exemplo. Já previa que o fardo por “tudo de errado que está aí” recairia nas costas da presidente da República.
Daquele momento em diante, Dilma passou a ser responsabilizada por todos os problemas do país acumulados em mais de 500 anos de história de desigualdade social, corrupção e todo tipo de desmandos em governos pregressos. E Dilma era e é do PT. Com a queda de sua popularidade, a rejeição ao partido também aumentou. Some-se a isso a massacrante cobertura da mídia ao julgamento da ação penal 470, o chamado mensalão. A obsessão foi tamanha que chamou a atenção até da ombudsman da Folha de S.Paulo, que criticou a falta de assunto para tanta notícia sobre os condenados do mensalão.
Cada dia mais parcial, a cobertura jornalística da grande mídia trabalhou para fazer do PT sinônimo de corrupção. Até quem não tem envolvimento direto com política começou a dizer: “Temos que acabar com a corrupção, é preciso tirar o PT.” Enfim, a “opinião publicada” passou a influenciar sobremaneira a “opinião pública”. Assim, o ódio ao PT se tornou a força motriz do discurso “dos homens de bem”. A pessoa não é filiada ao PSDB, mas se identificou com o partido porque acredita na meritocracia, por entender que o PT sustenta vagabundos, porque paga seus impostos e não pode conviver com gente que está no poder para roubar. Em São Paulo, ouvi gente dizer que não entendia como “pessoas legais” poderiam votar no PT, ou então, entre os mais extremados, que quem apoiava o partido é “porque era bandido também”.
Os grandes grupos de mídia (Rede Globo, Folha, Estadão e Veja – para citar apenas alguns) captaram bem essa mensagem e entraram para valer no jogo. De forma escancarada, tornaram-se a caixa de ressonância desse grupo. Se tivessem pelo menos tentado se manter imparciais também teriam um cardápio variado de críticas ao governo Dilma. Ainda que meu voto tenha sido dela, não defendo o governo de forma acrítica. É preciso observar e corrigir erros. Só assim a administração pública e a política serão mais efetivas. Mas exageraram na dose. O ódio ao PT e a busca pelo poder a qualquer custo fizeram com que os barões da mídia se cegassem. Já não se preocuparam em disfarçar que são o maior partido de oposição ao governo na atualidade e se tornaram o maior cabo eleitoral da direita, personificada em Aécio Neves nestas eleições.
Festival de sujeira
O problema, para eles, claro, é que isso não colava com a realidade de milhões de pessoas que mudaram de vida nos últimos 12 anos, seja por começarem a ter membros da família em uma universidade, seja por terem conquistado a casa própria ou por terem podido viajar de avião. Definitivamente, aquilo que estava estampado nos jornais e revistas e exibido na tela da TV não representava a realidade da pessoa. Ficou claro que as pessoas passaram a acompanhar telejornais como quem assiste novelas: acham interessante, até comentam, mas sabem que se trata de ficção e que na prática a vida é outra.
Com isso, as pesquisas insistiam em mostrar Dilma em primeiro lugar. Houve momento ou outro em que os institutos chegaram a colocá-la atrás de Marina Silva (no primeiro turno) e de Aécio, mas no geral, lá estava ela com um bom percentual de votos consolidados. Diante desse quadro, bateu o desespero. A três dias do segundo turno da eleição, a Veja, em edição antecipada, estampava em sua capa uma denúncia vazia, sem provas, sem testemunhas, sem ninguém que endossasse a grave acusação que fazia. E o que fizeram os demais veículos? Coraram por ver tão baixo nível de jornalismo? Não; reproduziram a “notícia”. Na Globo, a frase pinçada da revista “Lula e Dilma sabiam de tudo” ficou congelada por eternos segundos. E nem uma palavra sequer sobre o fato de o advogado do doleiro ter dito que seu cliente jamais dera tal declaração. Uma tentativa despudorada de golpe eleitoral.
A Globo ainda anunciou, com uma sonoridade enfática dos apresentadores de seus telejornais, que a sede da Editora Abril fora “atacada” após a publicação da denúncia contra Lula e Dilma. Último lance do golpe: o PT “ataca” e tenta calar os inimigos que querem mostrar a verdade.
É digno de nota que o PT recorreu ao TSE e conseguiu direito de resposta na Veja. A revista desdenhou e publicou discretamente a resposta, seguida de um novo texto de ataque. A resposta só viria em espaço adequado após o TSE estabelecer multa em caso de descumprimento da decisão. Mesmo assim, as “pessoas de bem” – mas com o discurso do ódio – espalharam pelas ruas do país a cópia da capa e da “reportagem” da revista e disseminaram via redes sociais o boato da morte do doleiro.
Foi um fim de semana longo, em que eu me perguntava se a maior farsa jornalística da nossa história e o poder econômico de quem detém os maiores grupos de comunicação do país venceriam as eleições. O tempo mostrou que, por uma margem pequena, a realidade falou mais alto. Baseada nos fatos da própria vida, e não na ficção em forma de notícia, a maioria fez a escolha seguindo suas convicções pessoais. Eu diria que mais que um não a um projeto político diferente do atual, comandando por Dilma Rousseff e pelo PT, o resultado das eleições foi também um não ao atual modelo de jornalismo. O divã será pequeno para tantos bons profissionais que estarão em crise após esse asqueroso festival de sujeira e falta de ética praticado pelos veículos que os empregam.
Eu, que há um tempo venho falando sobre o fim do jornalismo, de repente me vejo com a esperança de que tudo isso sirva para que a profissão seja depurada e sobreviva a toda essa mediocridade que vimos neste outubro de 2014 – o pior período do jornalismo brasileiro. Espero, pelo menos, que sirva de exemplo do que não se deve fazer. E que venha a Lei dos Meios.
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Joselani Soares é jornalista com quase 20 anos de experiência e pós-graduada em Educação Ambiental