Franklin Roosevelt, Juscelino Kubitschek, John Kennedy, Fernando Henrique Cardoso. O que estes presidentes têm em comum? Nenhum passaria pelo teste de elegibilidade inaugurado pela imprensa dos Estados Unidos há 27 anos, um teste que encerrou a carreira do mais talentoso ex-candidato norte-americano não eleito presidente. Em 1987, uma pesquisa Gallup colocava o senador democrata Gary Hart 13 pontos à frente do mais provável candidato republicano na eleição de 1988, o futuro vitorioso George Herbert Walker Bush. Sua candidatura foi enterrada no dia 2 de maio, numa viela escura atrás da casa que ocupava em Washington, perto do Capitólio. Gary Hart, de suéter moletom com capuz se viu literalmente encostado na parede por quatro repórteres e um fotógrafo do jornal Miami Herald.
Vários tabus foram derrubados naquela viela da capital. Pela primeira vez, um jornalista se viu cara a cara com um candidato presidencial e perguntou à queima-roupa: o senador teve relações sexuais com aquela mulher? Naquele momento, o repórter ainda não sabia o nome de Donna Rice, vendedora de produtos farmacêuticos e aspirante a modelo que se tornaria a primeira mulher levada pelo furacão sensacionalista da era moderna do adultério de figuras públicas. Não havia também precedente no fato de respeitados repórteres políticos serem plantados sob disfarce para vigiar um senador com o objetivo de documentar o que ele fazia e com quem no espaço privado de sua casa.
Se o leitor duvida da importância deste ato interrompido da dramaturgia política americana, prometo que suas reservas serão dissipadas por um dos melhores livros de análise da interseção entre política e mídia pós-Watergate.
Matt Bai, ex-repórter do New York Times e hoje colunista do Yahoo, autor de All The Truth Is Out: The Week Politics Went Tabloid (Toda A Verdade Exposta: A Semana Em Que a Política Foi Para Os Tabloides) faz mais do que costurar uma narrativa absorvente. Ele questiona o papel da mídia, enamorada de si mesma por ter tirado Richard “Não Sou Escroque” Nixon da Casa Branca, acostada pelo avanço dos tabloides sobre a cobertura política e transformada pela exigência do movimento feminista, que cobrava igualdade sob os lençóis. Bai lembra que, naquele período pré-internet os caminhões de satélites tinham injetado o tempo real na cobertura política e o custo da operação criava demanda de preencher programação, ou melhor, encher linguiça.
Às urnas
O autor decidiu revisitar o arco trágico da carreira de Gary Hart por causa de uma entrevista que fez com o ex-senador, em 2002. O encontro o assombrou durante os anos seguintes, quando Bai começou a comparar os candidatos das novas safras ao intelecto superior de Hart. Em 2002, quando ninguém tocava no assunto, Hart esperava que os Estados Unidos fossem mergulhar numa recessão. Previu também a explosão do terrorismo sem Estado instigado em parte por uma desastrosa invasão do Iraque, ainda por começar.
No livro, Bai revela a identidade da mulher que deu a partida no trem desgovernado que resultou na renúncia de Hart à candidatura, uma semana depois do bizarro confronto na viela atrás de sua casa. Confinada a uma cadeira de rodas por sofrer de esclerose múltipla Dana Weems hoje se arrepende de ter dado o fatídico telefonema para o então repórter Tom Fiedler do Miami Herald. Fiedler tinha acabado de publicar um artigo criticando as especulações da mídia, já farejando escândalo nos rumores sobre a vida amorosa do senador, que tinha se separado duas vezes da mulher, Lee, com quem vive até hoje. Weems leu o artigo, ligou para o repórter, contou que sua amiga tinha feito um passeio de barco com Hart, tinha foto para provar e sugeriu que Fiedler tomasse um avião de Miami para Washington porque a dita amiga estaria nele, a caminho de um fim de semana com o senador casado. Dana Weems confessa a Bai que era imatura e tinha ficado perplexa com a estupidez do homem que queria ser presidente.
Uma correção histórica feita por Matt Bai é mais do que uma tecnicalidade. Quase todas as narrativas do escândalo Gary Hart destacam a arrogância do então senador ao dizer, “podem me seguir por aí, vão ficar entediados”. Mas, ao despachar seus repórteres para investigar a privacidade de Hart, o Miami Herald não tinha conhecimento desta frase. Ela constava de uma entrevista ainda não publicada a E.J. Dionne, então o principal repórter político do New York Times. O próprio Dionne disse que considerou a frase um sinal de sarcasmo do político que acreditava na inviolabilidade de sua vida privada e não um convite para ser de fato seguido. O comentário foi usado para justificar o papel da mídia na destruição da carreira do presidente que não foi.
Amanhã [terça, 4/11], os americanos vão às urnas para eleger deputados, senadores e 34 governadores. Examinando o panorama humano desta safra, a mídia pode usar o livro de Matt Bai para um momento de introspecção.
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Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York