Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O ‘making of’ de uma grande matéria

Fui ver como é que os grandes trabalham e acompanhei um repórter vencedor de um Prêmio Esso nacional durante a produção de uma reportagem – descobri que Renan Antunes de Oliveira é igualzinho a todos nós. Primeiro é o mito da reportagem. Sua preocupação era com água, chave, i-Pad, comida, internet, celular, carro, gasolina, pedágio, estrada, horário. Tudo aquilo que qualquer pessoa enfrenta.

Mas vamos a uma visão diferente: a pauta. A história era sobre um índio Guarani Kaiowá nos grotões do Mato Grosso do Sul, que precisou de uma ordem da justiça para ser enterrado na terra onde foi assassinado. Teodóro Recalde, 34 anos, pai de quatro filhos, foi morto a facadas na manhã de 27 de setembro por um jagunço, numa fazenda em Paranhos. Ele foi o terceiro Kaiowá assassinado da sua aldeia desde 2009.

Mas, em um fato incomum, após mais de 500 anos de luta indígena por terras, uma tribo precisou brigar na justiça do homem branco para conseguir que um dos seus tivesse o direito a ir parar a sete palmos debaixo dela. Apenas com o suficiente para cobrir seu caixão.

Pegando a estrada

A reportagem começou com uma notinha de jornal que falava do assassinato do índio Guarani. Exatamente como Truman Capote em A Sangue Frio. Foi um tiro certo: jornais diários estão cheios de boas histórias mal contadas. Basta procurar. O repórter precisava de um assistente pra viagem e eu embarquei na aventura. Combinamos tudo num dia e saímos no outro, pois no jornalismo é assim que as coisas acontecem. Partimos de Porto Alegre (RS) no dia 04/10 de 2011 às 5h20min, com destino a Paranhos (MS). Um trajeto de 1.200 quilômetros.

Fomos de carro, um Gol preto novo, com 7.300 quilômetros rodados, pois o único aeroporto do Mato Grosso do Sul que recebe voos de Porto Alegre fica na capital, Campo Grande, a 456 Km do nosso destino. Sem contar que só as passagens aéreas de ida e volta para duas pessoas sairiam na faixa de mil reais. Aí vem um ponto importante: se você é repórter de um grande jornal, você vai de avião e aluga um carro, com tudo pago pela empresa, mas um repórter independente, não. Ele precisa economizar tempo e dinheiro.

Seguimos pela BR 116 e entramos na BR 386, que atravessa o RS, até Frederico Westphalen, fronteira com SC. Nesse percurso fizemos uma parada para o café da manhã e para tirar a água do joelho. Entrando em SC, o repórter comprou duas sacolas de jabuticabas, daquelas de feira, de um vendedor de beira da estrada. Doces, suculentas e redondinhas. Uma delícia. Mas depois de 15 minutos as frutas já rolavam pelo chão do carro e, mais de uma vez, encontraram a sola dos nossos calçados. Não satisfeito com a lambança, ele ainda resolveu parar num quiosque da BR 282 pra comer melancia. Quem me dera não termos feito essa parada: procurávamos uma estrada com poucos caminhões e menos tráfego. O objetivo era ganharmos tempo, mas acabamos seguindo o percurso maldito do vendedor de melancias, que economizava menos de 20 quilômetros por uma estrada deserta, estreita e cheia de curvas. O nosso repórter Esso, temperamental, não gostou do trajeto. Ficou inconformado em ter embarcado na sugestão do vendedor, pois o seu caminho “era melhor”. “O maldito vendedor de melancias” virou ícone pop na viagem e não seria perdoado nem na volta pra casa.

Foi aí que descobri que o grande repórter pensa que sabe de tudo.

Esse “atalho” nos levou até o município de Campo Erê, fronteira com o Paraná. Parada pro almoço em um posto de gasolina, que naquela altura já era um banquete: arroz, feijão, macarrão, polenta com queijo, salsichão assado e umas tiras de presunto cozidas. E como estávamos sozinhos no restaurante e com câmeras a tiracolo, recebemos tratamento VIP. Era só pedir que chegava mais comida na mesa. Um luxo para dois mortos de fome. Aí já tínhamos viajado por 8h e 30min: o repórter não aguentava mais dirigir e depois do almoço não conseguíamos nem ouvir falar de comida.

O melhor motorista do Paraná

Mais 30 minutos e chegamos ao município de Renascença (PR). Uma cidadezinha com menos de 7 mil habitantes, mas com o “melhor motorista da região”. A frase não é de um homem modesto. É de Sérgio Bortotinho, 36 anos, ex-caminhoneiro e apaixonado por motocicletas. Ele se acha o speed racer de Renascença. Chegamos à figura por indicação de taxistas, depois de tentarmos contratar motoristas para assumir o volante por um trecho da viagem, enquanto o Renan dormia. Assim não perdíamos tempo.

Negociações feitas e ficou acertado o valor de R$150,00 pelo serviço, mais R$55,00 para uma passagem de ônibus de volta. Ele nos levaria até o município de Cascavel, um trajeto de 200 quilômetros, onde embarcaria em um ônibus pra sua cidade. Tentamos convencer Sérgio a nos levar até Toledo, mas não teve jeito, nem pagando o dobro – a esposa não iria gostar.

Aí, aprendi que um repórter independente precisa ter dinheiro. Bastante dinheiro. Ou um assistente que saiba dirigir… Ah, claro! GPS também ajuda. Durante boa parte da viagem ele foi utilizado para checar as rotas de viagem e calcular o trajeto mais curto. Minha função, dentro do carro, se resumia a duas atividades: manter-nos na rota, checando a navegação via GPS com outros mapas virtuais e não deixar o repórter dormir na direção.

Às 15h e 51min o celular do Renan tocou. Era a esposa e a filha caçula de dois anos. Aquele mito de que grande o repórter não tem família é papo furado. Renan tem seis filhos e, segundo ele, trabalha pelo sétimo.

A primeira noite

Em Toledo (PR) deixamos o motorista. Ele resolveu ficar na faixa mesmo, com os R$150,00 no bolso mais o dinheiro pra passagem de volta. Nesse ponto o repórter assumiu a direção e seguimos mais 50 quilômetros pela BR 467, até ela se transformar na BR 163, onde mal existe sinal GPS. Após 106 quilômetros, às 19h30min chegamos em Guaíra, região de fronteira entre o Paraná e o Mato Grosso do Sul.

Paramos em um posto para abastecer, fizemos um lanche rápido e ainda encaramos mais 45 quilômetros de rodovia MS a dentro.

Eram 21h e resolvemos parar na cidade de Eldorado. Fomos procurar um hotel com sinal de internet. Aí entra outro detalhe crucial: um repórter não pode ficar sem comunicação com o mundo. A primeira pousada que encontramos era simples, administrada por um sujeito pra lá de burro. Um apanhado de quartos de alvenaria, térreos, com telhas de zinco que avançavam como toldos insinuando o início de uma garagem. O dono, um sujeito com forte sotaque sulista garantiu o sinal de internet. Explicou que o quarto com duas camas custava R$ 70,00. Mas ele não demorou mais do que dez minutos para pedir que procurássemos outro lugar pra passar a noite. O motivo? Alegou que preferia esperar chegarem mais turistas na cidade, em família, para cobrar mais caro pelo quarto. Fiquei com a impressão de que o sujeito não foi com a nossa cara e achou que fôssemos um casal gay. “Tu sabes que essa não é uma estratégia brilhante, né?”, ironizava o repórter poucos instantes antes de entrar no carro e sair sem rumo.

Rodamos quase 20 minutos pedindo informações sobre pousadas, até que tivemos que recorrer ao maior hotel da cidade. Hotel Laçador, um prédio grande, de esquina, cor de salmão, com dois andares. A diária custou R$ 80,00. Mas o sinal de internet era bom. Aí vai mais uma rotina de um repórter Esso: ao entrar no quarto a prioridade era checar e carregar bateria das câmeras fotográficas, notebooks e i-Pad.

O quarto tinha duas camas, uma TV e um banheiro sem box, tão pequeno que o chuveiro, quando ligado, ameaçava dar banho na privada. O ralo do cubículo era tão sujo e inútil que em alguns pontos as poças d’água se formavam para quase cobrir os dedos dos meus pés. Fomos dormir às 22h e acertamos de pegar a estrada às 5h da madrugada do dia seguinte, 05/10. Mas nos atrasamos cerca de uma hora. Quando acordei, fui direto tomar um banho rápido. Meus cinco minutos de distração foram suficientes para o Renan sumir do quarto com todo seu equipamento. No corredor, seu único vestígio era a chave na porta. Peguei minha mochila e corri para o estacionamento, já imaginando o quão engraçada a brincadeira lhe pareceria.

Dito e feito: estava arrumando a bagagem no carro e escondendo um sorriso debochado. Outro ponto interessante é que descobri que estas viagens podem ser muito divertidas.

Róbson, Patrícia e a bebê Gabrieli

Antes de voltarmos pra viagem, descobrimos que o hotel tinha uma espécie de bar, daqueles do tipo “paradouro de beira de estrada”. Fomos tomar café e o lugar estava deserto. Cerca de vinte mesas e vários balcões nos faziam companhia, pois a garçonete se dividia entre nos atender e varrer o lugar. Foi aí que conhecemos nossos futuros colegas de estrada. Pela porta do bar entrou um casal jovem, carregando, toscamente, dois sacolões, uma mochila e uma bebê recém nascida. Sentaram numa mesa e pediram uma xícara de café, para dividir.

O repórter é do tipo de homem que não pode ver criança que encarna um pai bobão ou até vira uma delas. Não demorou 10 minutos e o Renan já estava de papo com o casal. Na verdade os dois constituíam mero detalhe, o objeto da sua atenção era a pequena Gabrieli que, com apenas cinco meses, já encarava uma viagem de ônibus de 1.500 quilômetros. Um registro do absurdo. Os pais, Róbson, de 28 anos, e Patricia, de 20, vinham do norte do Mato Grosso (MT), da cidade de Sinop, “a capital do nortão”. Ou “a cidade com o melhor slogan para espantar turistas do mundo”. Um município com pouco mais de 110 mil habitantes que tem sua economia sustentada pela agropecuária e indústria madeireira. A relevância de contar esta bobagem é que eram nestes dois setores que Róbson fazia seus bicos: trabalhava na colheita de grãos e em atividades de corte de chapas de madeira até o pai de Patricia ligar avisando que havia conseguido um bom emprego para o genro em Tacuru (MS). Aí juntaram umas economias e investiram os últimos R$ 446,00 em duas passagens de ônibus de Sinop para Eldorado.

A nenê estava há 20 horas sem tomar banho. Com a fralda suja, chorava e já estava com o rostinho vermelho. A pobrezinha devia estar toda assada. Mesmo chorando, o rostinho daquela criança alegrou minha manhã. Um milagre estar viva com uma família despedaçada e maltratada pela vida como aquela na minha frente. A mãe, uma menina inexperiente, apenas balançava Gabrieli e tentava consolar a filha. Vendo a situação, o Renan sugeriu: “Olha, eu tenho seis filhos. Troquei muita fralda e dei muito banho em bebês. Tu podes dar um banho na tua bebê numa pia de banheiro. Como o clima aqui é quente, a água é quase morna. Aí tu lava a criança, seca com papel e vai ver que ela vai parar de chorar.” E lá se foi a Patricia com a pequena Gabrieli. Enquanto isso, descobri, conversando com o Róbson, que a família não tinha mais dinheiro pra viajar. O plano brilhante era esperar carona na beira da estrada. “Lobo, tu acha que cabe todo mundo no carro se a gente colocar o equipamento no porta-malas?” me perguntou o repórter.

Afirmei que sim e o Róbson pareceu demorar pra processar a informação que os levaríamos até seu destino. Confirmei que estava dentro da nossa rota e o Renan bateu o martelo: “Vamos deixar vocês e a bebê na porta de casa, em Tacuru.” Quando mãe e filha voltaram, sem choro, e ambas com semblante de alívio, fomos colocar tudo no carro. Acontece que os três sacolões passaram pelo milagre da multiplicação ou deram cria. Tinha mais duas sacolas e um saco de lixo azul, cheio de roupas pra socar no carro. A conclusão é que foi todo mundo apertado, menos o Renan. Mas voltamos pra estrada e Gabrieli conseguiu dormir aconchegada no colo da mãe.

Durante a viagem conhecemos um pouco da história daquela família, triste retrato da pobreza. Róbson só estudou até a terceira série, pois começou a trabalhar na lavoura com 13 anos e Patricia avançou apenas até a sexta. O homem bugre, bem magro, e com jeito de caipira bon vivant é lento de raciocínio. Mal conseguia responder às perguntas que fazíamos. E não era timidez, pois foi só alguém falar de mulheres que ele mostrou as garras. Confessou que tinha três filhos do primeiro casamento, que não via há dois anos. “Estão trabalhando e estão melhores sem mim”, era a resposta padrão acompanhada de um tom de desleixo. Patrícia conheceu o partidão em uma festa, se apaixonou, transou e engravidou. O resto você já imagina. Patrícia é filha de pais separados e é toda amores por Róbson. Foi só o marmanjo reclamar de dor de dente que ela já saiu à cata de um comprimido.

Na viagem seu destino era a casa do pai e da madrasta, que, segundo ela, é “do bem”. Ao contrário da mãe, uma paranaense de 40 anos, que seria “do mal” e ladra, pois teria furtado os móveis da casa da filha para decorar a residência do novo namorado. Lembra quando disse que a bebê era um milagre? Pois é.

A história era tão absurda que, poucos quilômetros após passarmos pela cidade de Iguatemi, acabamos entrando em uma estrada pro lado errado. Pegamos a MS 386, que segue até Amambai. Nesta região, o sinal GPS já era precário e guiar em uma estrada, em plena noite, apenas com o farol do automóvel, não era viável. Ficamos rodando, perdidos, por 20 minutos, até acharmos uma placa e retornarmos pelo cruzamento onde havíamos errado a rodovia. Então seguimos pela MS 295 por 85 quilômetros, durante 1h30min, até Tacuru – cidadezinha de 10 mil e 300 habitantes que fica no sudoeste do MS e possui uma praça onde o destaque vai para a escultura de uma vaca.

Eram mais de 10h quando achamos a casa do pai da Patricia. Rua sem asfalto, com terra bem vermelha e úmida, como argila, e uma casa simples sem porta, janela ou buraco que o valha, com paredes de cor indefinida, mas que antes da tinta descascar poderiam ter sido verdes. Aliás, aprendi que verde e azul claro são tons da moda para as casinhas mais populares pelo MS.

Fomos recebidos a latidos por um cachorro tão rouco quanto magro. Que veio da lateral da casa. Aí entendi que o imóvel foi construído de costas para a rua. As portas e janelas ficavam na lateral do terreno, bem ao fundo. Descarregamos o carro e a madrasta da Patrícia nos agradeceu pela carona e nos convidou para entrar. Fizemos sala e logo fomos pra rua, onde encontramos um Róbson inconformado com a nova moradia. “Não era bem isso que eu esperava”, dizia o vida mansa.

E então fomos embora, deixando pra trás uma menina inocente, mãe de um bebê desprotegido e filha de um pai ausente e inconformado.

É sempre culpa dos índios

Uma hora e meia e 86 quilômetros depois chegaríamos a Paranhos. Parte do fim de mundo onde tudo aconteceu. Rodamos por uma cidade pequena de 12 mil habitantes, que vive da pecuária de corte e produção de leite. Eram quase duas horas e saímos em busca de um restaurante. Inocência de dois gaúchos acostumados com Porto Alegre. Na cidade inteira existem dois restaurantes que só abrem ao meio-dia e aí, meu amigo, não tem nada mais nada. Acabamos comprando picolés de milho verde na rua. Produto do tipo “marca diabo”, mas que enganou a fome.

Corremos pra única delegacia da cidade. Pedimos acesso ao inquérito da morte do índio. O delegado, refestelado em uma cadeira confortável atrás de uma mesa de mogno, desconversou e disse que precisaríamos fazer uma requisição que levaria não sei quantos dias etc. Ele viu que éramos de fora e aplicou a burocracia padrão pra ver se íamos embora. Naquela cidade, todo mundo conhece todo mundo e os dois estranhos atraíam olhares curiosos. Outra característica é que lá índio sempre está errado. Não importa o que aconteça. Eles são “bêbados, ladrões e vagabundos”, segundo viria a nos relatar o fazendeiro que ordenou o assassinato, na frente de um delegado federal. Mas já chegamos lá, na fazenda São Luís.

Saímos da delegacia e o Renan queria se dar por derrotado. Pensava que tinha dirigido até lá para nada. Coloquei a mão no seu ombro e apontei pra duas caminhonetes pretas com o emblema da polícia federal que estacionavam na frente de um casebre de meio metro por meio metro. Caindo aos pedaços, sem janelas e mal acomodando duas cadeiras quando a porta estava aberta. O olho do repórter brilhou, entramos no carro e estacionamos atrás dos agentes. Eles haviam combinado de esperar um delegado, bem vestido, de terno risca de giz claro e oclinhos, na “casinha da Funai”. Aquela vergonha de construção que eu acabei de descrever era a sede da Fundação Nacional do Índio na cidade. Uma piada de mau gosto que ilustrava exatamente como a questão indígena era vista por ali.

Os federais que nos deram bola foram dois: Pedro e João (os nomes foram preservados a pedido da fonte). Pedro era um jovem, do tipo surfista do bem, recém-integrado à corporação. Já João era um gaúcho parrudo com jeito de alemão, tão racista quanto os piores do partido de Hitler. É dele a frase “isso aí é briga de índio com índio e largaram o corpo na fazenda do cara”. Na cabeça dele, um suposto especialista em investigação de crimes federais, a única hipótese razoável nasceria de alguma merda que os índios tivessem feito. Pra ele, homem branco é aquela coisa, sabe? É branco. E branco é que nem telejornal em horário nobre: só diz a verdade. Ah, gente, a ignorância é uma bênção!

Convencemos o Pedro a nos deixar segui-los até o local do crime. O delegado chegou, fez pose, não gostou muito da nossa presença mas entrou na carona de uma caminhonete e a caravana da polícia saiu em dois veículos pro rali dos sertões, versão Paranhos.

Sério, imagine a cena: duas caminhonetes potentes, daquelas com caçamba, 4×4, em uma estrada de terra esburacada e completamente irregular a mais de 100 km/h e os dois jornalistas num Gol, de janelas fechadas e comendo toda a poeira marrom que entrava pela saída de ar do painel do carro.

No palco da confusão

A fazenda São Luís foi o pedaço de chão escolhido por uma tribo de índios Guarani Kaiowás para levantar acampamento em Paranhos (MS). Os índios ocupam uma área de 80 hectares, dos 1.900 da São Luís, desde 2009. Só as terras desta fazenda valem um bilhão e seiscentos mil reais. A propriedade é do clã Escobar desde 1880, quando Miguel, um espanhol naturalizado paraguaio, virou posseiro das terras. Miguel casou-se com uma viúva argentina de nome Saturnina, que tinha um bom dinheiro herdado do primeiro casamento. Então tiveram um filho, Ramão Escobar.

Ramão teve uma prole vasta: 15 filhos. O 1° nasceu em 1930, a segunda foi Estér em 31, Firmino em 32 e outros 12 que já perdi as contas. Os filhos herdaram, cada um, uma parte da terra, que foi sendo comprada por Firmino até que ele se tornou o patrão da Fazenda São Luís, onde cria gado e soja. Firmino Aurélio Escobar tem 79 anos, ainda anda a cavalo e “arreia cedo e só desarreia à noite”, como conta o capataz Irineu, que nos acompanhou até o início das terras invadidas, Y’poi, pra garantir a ordem do patrão: não chegar até os índios. Seu filho leva seu nome e responde pela administração da fazenda, em Amambai.

Para entrar na fazenda, acompanhamos duas viaturas da Polícia Federal, com três agentes, um delegado federal e um agente da Funai de Ponta Porã. O objetivo era buscar alguns índios para colher depoimentos. Quando chegamos, Firmino demorou mais de 30 minutos para receber as autoridades. Chegou montado em um cavalo Quarto de Milha, que vale 20 mil reais, e começou a contar como sofre, o pobre coitado. A sua versão da história é que comprou a fazenda para ter tranquilidade, mas os índios a invadiram e ele tem medo. Dizia que os Guaranis matavam de quatro a cinco bois por mês, viviam bêbados e drogados pelas estradas e não tinham mais limites. Informava, ainda, que encontrara um boi com dois tiros de “arma comprida” recentemente.

“Saindo desse problema acho que minha vida vai aumentar bem mais”, projeta o fazendeiro que informa aos federais que “com a minha vida melhorando, melhoram a de todos vocês”. O delegado desconversa a tentativa de suborno e, parecendo não uma autoridade, mas mais um funcionário do patrão da São Luís, só falta pedir pelo amor de deus para ser autorizado a visitar os índios. “Só nesse sentido que eu quero dizer”, é o que o fazendeiro repete incessantemente antes de depois de cada frase sobre retirar os índios das suas terras. A conversa termina com ele insistindo para os policiais aceitaram acompanha-lo no almoço, mas o delegado tem horário. Em Paranhos, um índio professor Guarani de outra aldeia os esperava para servir de tradutor.

Depois do fazendeiro autorizar o trabalho dos federais e limitar o acesso da nossa reportagem após 20 minutos de negociação, fomos guiados pelo capataz Irineu até uma estrada com uma ponte improvisada sobre um córrego estreito: o significado da palavra Y’poi em Guarani. O Renan fez algumas fotos de longe. Y,poi é um apanhado de cabaninhas de lona sustentada por pedaços de pau. Eu bem que pensei em pular o riacho e ir até a aldeia, mas a indiarada não falava minha língua, nem eu a deles. Além disso, pra piorar tínhamos um jagunço no nosso encalço, armado, que foi bem claro sobre os limites que não deveríamos cruzar. Respeitamos, a contragosto. É claro.

Os federais não conseguiram trazer nenhum índio para prestar depoimento, pois eles não queriam sair sem autorização do cacique Rodolfo, que mora na reserva indígena próxima de Paranhos. Seguimos pra lá, até chegarmos numa missão alemã, onde conheci Diego, 17, filho de pai Guarani e mãe paraguaia, se preparando para dar aulas de informática para as crianças indígenas que estudam na missão. Eram 12h30min do dia 05/10 e ele começava as aulas às 16h. Eu propus que nos levasse até a casa do cacique, dentro da reserva, que o traríamos de volta antes do horário da sua aula. Ele topou, empolgado pelo ímpeto juvenil de um índio deslocado da sua cultura. Assim conseguimos um guia. Diego nasceu dentro da reserva e conhecia seus caminhos com a palma de sua mão. E se não estivéssemos com Diego, é tão certo se perder lá dentro como ser assaltado, um dia, em cidade grande.

Quando chegamos na casa do cacique, ele estava tomando banho em uma tina. Nos recebeu desconfiado, pediu identificação de imprensa e nos convidou para esperar embaixo de uma árvore. Sacou o celular e ligou pra Funai. Perguntou se poderia nos levar até Y’poi. Os índios daquela reserva falam no celular, andam de moto e vestem camisetas de times de futebol, brasileiros e paraguaios. Eles vivem cruzando a fronteira já que a reserva de Paranhos ficam no limite do limite do Brasil.

Dos 15 Guaranis que nos receberam, apenas Diego e o cacique Rodolfo falavam português. Os demais nos olhavam curiosos e desconfiados, sentados em toras de madeira em baixo de uma árvore que só índio mesmo consegue identificar, balbuciando, cabisbaixos e tímidos. O cacique conversou um pouco conosco, contou que era primo de Teodóro, a vítima do início desta história, e pediu para voltarmos na manhã do dia seguinte que então ele nos levaria até Y’poi. Mas precisávamos voltar pra Porto Alegre. Já tínhamos uma matéria. Vimos os envolvidos, apuramos tudo o que foi possível e resolvemos voltar. Mas esta é outra história. A reportagem do Renan Antunes de Oliveira foi publicada pela Agência Publica e foi capa da revista Pensamento um ano e um mês depois desta viagem. Ela descarnou toda a história do assassinado de Teodoro Recalde e seus dois primos. O fazendeiro que entrevistamos foi mandante dos homicídios. Seus filhos, em um dos casos, usariam até uma caminhonete emprestada pelo prefeito de Paranhos, vestiriam capuzes, pegariam em espingardas e caçariam os índios como animais, enquanto gritavam “Kure! Kure! Kure!”, ofensa em guarani que significa porco.

A estrada que leva até Paranhos (MS) passa por diversas fazendas, a maioria com nomes de santos: Santa Regina, Cristo Rei, São Paulo, Santa Fé do Sul, Santa Rosa, Santa Rita de Cássia, São Miguel, São Sebastião de Tacuru, Santa Paola, Santa Helena, Santa Clara e outras. Tomara que isso, de alguma forma, ajude a melhorar aquele inferno.

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>> Versão publicada na na Agência Pública

>> Versão publicada na Revista Pensamento #01, para tablets IOS e Android 

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Tiago Lobo é jornalista e editor da revista Pensamento