Um compromisso de desarmamento unilateral tirou parte do frisson que cercava a cúpula do Apec, a Cooperação Econômica Ásia Pacífico, que começou hoje em Pequim. O Primeiro-ministro australiano, Tony Abbott, tinha ameaçado dar uma peitada em Vladimir Putin. Abbott se referia à sua revolta com a falta de cooperação russa na investigação da derrubada do avião da Malaysia Airlines sobre a Ucrânia, em julho passado, com 299 pessoas a bordo, entre elas, 38 australianos.
Diante do embaraço expressado por seus compatriotas, especialmente quando a Austrália será anfitriã da cúpula do G20, no próximo sábado, Abbott desconversou.
O espetáculo do notoriamente primitivo Abbott ameaçando um presidente com uma briga de campo de futebol foi um presente para sua quase vítima, o líder de 140 milhões de cidadãos vivendo num contínuo reality show. Afinal, qualquer sinal de decadência ocidental reforça a dieta russa de desinformação.
A Rússia que dá a Vladimir Putin 86% de aprovação nas pesquisas de opinião está em crescente declínio econômico e isolamento. O rublo enfrenta queda vertiginosa, o preço dos alimentos sobe por causa das sanções econômicas e a guerra na Ucrânia parece a caminho de se intensificar.
Putin, que não tem planos de largar o osso do poder quando terminar seu terceiro mandato, em 2018, hoje desperta a inveja de ditadores em treinamento na Turquia ou na Hungria. Sua máquina de propaganda continua a ser reforçada. A rede Russia Today, criada pelo Kremlin, vai ter seu orçamento de US$ 300 milhões aumentado em 40%, num momento em que o governo anuncia cortes de 29% com saúde. A rede cuja missão é propagar “o ponto de vista russo” para o mundo já atinge uma audiência de 600 milhões, transmitindo em inglês, árabe, espanhol e logo seus âncoras vão falar alemão e francês.
Audiência baixa
Na semana passada, a Gazprom, o monopólio estatal de gás da Rússia, exigiu a demissão de um popular anfitrião de rádio de Moscou, por “insensibilidade” ao tuitar a morte do filho do chefe de gabinete de Putin. Ocidentais coçaram a cabeça com a ideia de uma Petrobrás eslávica exigindo a cabeça de um radialista. Simples: a Gazprom controla a estação.
O incidente ilustra o gênio de Putin. A estação é considerada uma voz independente no jornalismo. Enquanto o ocidente comemora os 25 anos da derrubada do Muro de Berlim, o Putinismo celebra sua eficácia em usar todas as armas ocidentais para virar a democracia ao avesso. Putin financia ONG’s, extremistas e partidos políticos adversários. O controle da mídia, inclusive o falso apoio à mídia independente, é uma arma mais poderosa do que a antiga KGB.
Ele começou por entender, desde sua ascensão na década passada, que o controle da televisão seria crucial num país com nove fusos horários. A TV russa absorveu todo o glamour e valores de produção da mídia nos Estados Unidos e na Europa. Toda semana os executivos das TVs se encontram com representantes do Kremlin para receber instruções e fabricar temas em destaque, como a “ameaça nazista” na Ucrânia.
Um diretor e produtor que passou a última década na Rússia explicou a baixa de audiência de um dos reality shows copiados do Ocidente. O público não acreditava que as histórias contadas eram, de fato, reais. Depois de tantos anos de falsa realidade, só o gigantesco reality show nacional inspira confiança.
< ****** Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York