Em A guerra dos sonhos: exercícios de etnoficção (1998), Marc Augé, ao examinar as regras dos sonhos, mitos e ficção em tempos de TV por satélite e internet, afirma que no mundo há uma sobrecarga de informação que ameaça colonizar todos nós. Surge, então, à nossa frente um espetáculo que nos é perceptível aos pedaços, através de takes/tomadas, flashes e comentários efêmeros que obscurecem o real e sua historicidade.
Também explica o antropólogo que a produção de identidade se dá de maneira ritualística. E, para falar de identidade, é preciso falar do outro: “A atividade ritual atende à elaboração de identidades relativas e nesse sentido o rito é mediador, criador de mediações simbólicas e institucionais.” Ao reduzir a complexidade dos rituais a partir de um simplismo cerimonioso, os meios de comunicação deixam de contemplar a poética da relação para promover a política do ego. Quando a mídia deixa de ocupar o papel de mediadora entre os saberes, funcionando como ponte de conexão entre os múltiplos conhecimentos produzidos pela sociedade, a opinião pública sofre com as manipulações tendenciosas que transformam os meios de comunicação em propagadores da “era dos extremos”, projetando perigosamente as espirais da ignorância e da violência. Assim, movidos pela razão cínica, os agentes arrogantes da comunicação midiática impõem um estilo espaço-temporal acelerado à população, espalhando o mal da ansiedade em progressão geométrica. Sinais expressos da “supermodernidade”, na opinião de Marc Augé:
“O desenvolvimento dos meios de transporte e de comunicação nos dá a sensação de que o planeta está encolhendo. E na medida em que os meios de comunicação substituem as mediações, as referências se individualizam ou singularizam: cada um tem sua cosmologia, mas cada um tem também sua solidão. Esse é o movimento, que propus chamar supermoderno, porque me parecia proceder de um entusiasmo exagerado em relação aos processos constitutivos da modernidade.”
Essa crítica à exaltação tecnológica capaz de colocar os meios de comunicação como desbravadores voltados para a promoção de um mundo sem fronteiras e interligado em tempo real já havia servido de mote para canções criativas e ousadas, tais como 2001 (1969), de Tom Zé e Rita Lee, Parabolicamará (1991) e Pela internet (1997), de Gilberto Gil.
Uma “mercadoria noticiosa”
Em memorável gravação feita pelo grupo Os Mutantes, a música 2001 mistura ruralidade e urbanidade a partir de uma estética do ruído desconstrutora dos acordos midiáticos que costumam diluir as diferenças para viabilizar aglutinações homogeneizadoras, cujo efeito verossímil busca repercutir a noção de aldeia global como referência inovadora propiciada pelas tecnologias da informação, segundo o parecer do cientista canadense Marshall McLuhan, muito em voga nos anos 60 e 70, sendo ainda motivo de grande valia discursiva no cenário celebrativo da internet e das redes sociais. Lembremos aqui dos efeitos positivos da mídia digital, cantados por Gilberto Gil, quando funciona como suporte, por excelência, da integração entre os povos. Trata-se da canção Pela internet: “Criar meu website/ Fazer minha home-page/ Com quantos gigabytes/ Se faz uma jangada/ Um barco que veleje/ Que veleje nesse infomar/ Que aproveite a vazante/ Da infomaré/ Que leve um oriki/ Do meu velho orixá/ Ao porto de um disquete/ De um micro em Taipé […]/ Que leve meu e-mail lá/ Até Calcutá/ Depois de um hot link/ Num site de Helsinque/ Para abastecer/Aihê! Aihê! Aihê!/ Eu quero entrar na rede/ Promover um debate/ Juntar via Internet/ Um grupo de tietes/ De Connecticut”.
O estreitamento espacial e o encurtamento temporal proporcionados pela ampla cobertura midiática que promete tudo iluminar havia sido destacado por Gilberto Gil em Parabolicamará. O artista baiano demonstra, de maneira poética, como os meios de comunicação se alimentam da instantaneidade para promover contatos midiatizados sob o embalo de relações genuínas: “Antes mundo era pequeno/ Porque Terra era grande/ Hoje o mundo é muito grande/ Porque Terra é pequena/ Do tamanho da antena parabolicamará/ Ê, volta do mundo, camará/ Ê, ê, mundo dá volta, camará”. Acontece que, como diria o provérbio popular, a pressa é inimiga da perfeição, pois prejudica o matutar prudente que qualifica o universo perceptivo das relações dinâmicas, envolvendo sujeitos e objetos. Nesse âmbito, Tom Zé e Rita Lee descrevem com precisão, em 2001, o perfil dos sujeitos modificados tecnologicamente, comportando-se, assim, como meras extensões dos meios de comunicação:
“Eu quase posso palpar, a minha vida que grita/ Emprenha e se reproduz, na velocidade da luz/ A cor do céu me compõe, o mar azul me dissolve/ A equação me propõe, computador me resolve/ Astronauta libertado/ Minha vida me ultrapassa/ Em qualquer rota que eu faça/ Dei um grito no escuro/ Sou parceiro do futuro/ Na reluzente galáxia/ Amei a velocidade, casei com 7 planetas/ Por filho cor e espaço, não me tenho nem me faço/ A rota do ano luz, calculo dentro do passo/ Minha dor é cicatriz, minha morte não me quis/ Nos braços de 2000 anos, eu nasci sem ter idade/ Sou casado, sou solteiro, sou baiano, estrangeiro/ Meu sangue é de gasolina, correndo não tenho mágoa/ Meu peito é de sal de fruta, fervendo num copo d’água.”
Conduzida pela mídia frenética para ser estritamente “parabólica”, a sociedade deixou de considerar seu metabolismo compreensivo de caráter processual. Quase mais nada do que acontece beneficia a narrativa, tudo reverte em proveito da informação como mercadoria noticiosa. O extraordinário, o maravilhoso, é narrado midiaticamente com distanciamento protocolar ou envolvimento virulento, porém o contexto psicológico do acontecimento deixa de ser concedido ao cidadão, como reza a boa ética.
< ****** Marcos Fabrício Lopes da Silvaé jornalista, poeta, doutor em Estudos Literários e professor da Faculdade JK