Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Massa, o guerrilheiro

Se a imagem fosse mais fechada no rosto, e o som estivesse desligado, pareceria um discurso numa assembleia estudantil.

Quem tem a palavra é um nissei muito magro, cachecol branco, capote escuro e surrado. Exibe aquele misto de “nonchalance” e convicção típico de jovens militantes. Às vezes sorri com o canto da boca. Pontua as frases movendo a mão direita na vertical.

A câmera, um pouco afastada, mostra o entorno. Não são estudantes que o escutam. São senhores compenetrados, alguns de uniforme militar. O mobiliário austero sugere um tribunal. Mas não é um julgamento, e sim uma entrevista à TV.

A filmagem é em preto e branco. Som baixo, mas audível. E o discurso do jovem não tem nada do espírito contestador da época.

Ele elogia o ditador Médici. Enaltece as obras do regime militar, diz que o verdadeiro espírito brasileiro se manifestou na festa pela Copa de 70. Chama a guerrilha contra a ditadura de “aventura idiota e sanguinária”.

O protagonista dessas imagens é André Massafumi Yoshinaga, de 21 anos. Até sete meses antes da gravação, Massafumi, o Massa, era um dos guerrilheiros mais próximos de Carlos Lamarca, comandante da Vanguarda Popular Revolucionária.

O vídeo, de 2/7/1970, foi postado no YouTube há um ano. Enquanto escrevo, tem só 1.454 visualizações (rs.gs/r8O).

Escória engomada

A história de Massafumi é abordada com profundidade em um livro do historiador americano Jeffrey Lesser, “A Discontented Diaspora: Japanese Brazilians and the Meanings of Ethnic Militancy, 1960-1980” (Uma Diáspora Insatisfeita: Os Brasileiros de Origem Japonesa e os Significados da Militância Étnica, 1960-1980).

Lesser pesquisou a participação de descendentes de japoneses na esquerda armada. Descobriu cerca de 25. Todos nasceram no interior paulista, geralmente em famílias de agricultores. Mudaram-se para a capital para estudar.

Massafumi, de Paraguaçu Paulista, 460 km a oeste de São Paulo, atuava no movimento secundarista. Mesmo sem ter chegado ainda à faculdade, já era da VPR, organização barra-pesada. Participou de um único assalto, mas sua fama entre os órgãos de repressão era bem maior que isso.

A tese de Lesser é que os estereótipos associados a japoneses –samurais, kamikazes etc– tornavam os militantes nisseis especialmente temidos. Em todo ataque da guerrilha, alguma testemunha dizia ter visto “um japonês”. Pelos menos outros dois nisseis tinham participado de mais ações, e mais violentas. Mas foi Massa quem ficou conhecido como “o japonês da metralhadora”.

Em dezembro de 1969, Massafumi, junto com outro militante, Celso Lungaretti, pediu para deixar a base no Vale do Ribeira (SP), onde a VPR fazia treinamentos, e voltar para a capital. Saiu da organização, mas a ditadura ainda o caçava. Na clandestinidade, não encontrou guarida. Chegou a viver na rua, no entorno do Mercado Municipal da Cantareira.

O que aconteceu a partir daí é controverso. Segundo a versão mais conhecida, Massafumi, desnorteado, conseguiu contato com um guerrilheiro preso, Marcos Vinicio Fernandes dos Santos, amigo do movimento secundarista, pedindo orientação. Marcos pertencia ao primeiro grupo de militantes que tinha renegado publicamente, havia poucas semanas, a luta armada. Recomendou que Massafumi fizesse o mesmo.

Em circunstâncias até hoje obscuras, Massa entregou-se. O “japonês da metralhadora” tinha mudado de lado. A máquina de propaganda da ditadura usou-o ao máximo: em entrevistas, palestras em escolas, visitas a cadeias onde havia presos políticos. Como prêmio, Massafumi teve a prisão revogada. Desconheço provas de que tenha feito delações. Pelo contrário, há evidências de que protegeu ex-companheiros.

Depois disso, esquecido, enlouqueceu. Nunca se fixou em um emprego. Achava que a repressão ainda o perseguia e lia seus pensamentos. Escondeu-se na praia, onde imaginava ser mais difícil captarem suas ondas cerebrais.

No dia 7/7/1976, seis anos e cinco dias depois de ir à TV, Massafumi se matou, no sobrado onde morava, com a mangueira do chuveiro elétrico. Diante da cena, o pai, em desespero, rezava em japonês.

Nestes dias em que uma escória engomada pede a volta dos militares ao poder, convém lembrar histórias assim.

P.S. Além do livro citado, pesquisei no arquivo digital de “Veja”, no blog de Celso Lungaretti e na excelente dissertação de mestrado “O Terror Renegado”, de Alessandra Gasparotto (2008, UFRGS).

< ****** Álvaro Pereira Júnior é colunista da Folha de S.Paulo