Nos tempos correntes, muitos dos antigos conceitos da lógica se viram amplamente revolucionados, de tal sorte que a compreensão da racionalidade tal como nos veio desde a contribuição da Grécia antiga parece não mais se manter. Esta revolução, muitos entendem ser determinada pela própria natureza das coisas (cf. adiante), impondo a correção de erros antigos, que prejudicam, por vezes, o Bem e beneficiam o Mal, sendo de recordar que esta forma de ver o mundo não é privilégio nem da “esquerda” nem da “direita”.
Algumas novidades que merecem nossa reflexão, em termos de conceitos que se têm alastrado pelas vias eletrônicas e vêm sendo, a bem de ver, insuflados tanto pelos meios de comunicação social como pela capacidade que têm as redes sociais de amplificar qualquer voz:
1 – Verdade: tudo aquilo que beneficia e/ou justifica a nós ou a nossos amigos ou que prejudica nossos inimigos.
2 – Mentira: tudo aquilo que prejudica a nós ou a nossos amigos ou que beneficia nossos inimigos.
3 – Inimigo: todo aquele que não nos apoia ou a nossos amigos ou que não odeia os demais inimigos nossos. O simples fato de ele existir é condenável, por si mesmo.
4 – Amigo: todo aquele que nos apoia ou a nossos outros amigos e odeia os nossos inimigos.
5 – Convicção: a certeza de que tudo o que se fizer contra os nossos inimigos ou a favor dos nossos amigos e de nós está justificado de antemão.
6 – Intransigência: a exigência de prova de que se justifica o que se fizer contra os nossos inimigos ou a favor de nossos amigos e de nós.
7 – Fanatismo: o que une os prosélitos dos nossos inimigos em torno deles e os leva a contestar as convicções.
8 – Impunidade: situação decorrente de decisões que absolvam o inimigo ou que lhe imponham uma pena mais branda do que aquela que a intensidade do nosso ódio gostaria.
9 – Caça às bruxas: qualquer investigação que atinja os nossos amigos ou, o que dá no mesmo, aqueles que combatem fervorosamente os nossos inimigos.
10 – Justiça: qualquer investigação que atinja os nossos inimigos e poupe os nossos amigos e os que combatem nossos inimigos.
11 – Defesa: tudo o que se fizer contra a caça às bruxas.
12 – Chicana: tudo o que se fizer contra a justiça.
13 – Corrupção: expedientes que, de alguma forma, favoreçam a situação daqueles de que não gostamos junto a terceiros. Presume-se contra o inimigo, salvo prova em contrário que não seja produzida por este nem por quem lhe tenha simpatias, porque, neste último caso, qualquer tentativa de prova se tem como um insulto às pessoas honradas que o investigam.
14 – Senso de oportunidade: o que norteia os expedientes que, de alguma forma, favoreçam a situação daqueles de que gostamos junto a terceiros. Presume-se a favor do amigo, e qualquer tentativa de prova em sentido contrário é enquadrável no conceito de caça às bruxas.
15 – Natureza das coisas: situações evidentes por si, transcendentes a qualquer possibilidade de explicação, e que constituem a razão última de algo ser a expressão da Verdade, sem qualquer possibilidade de prova em contrário, cuja cogitação vale por blasfêmia e fortalecimento do Inimigo.
16 – Ordem natural das coisas: conjunto de valores decorrentes da natureza das coisas e que irrefutavelmente exprime o Bem e o Belo.
17 – Hierarquia: relação de mando e obediência, a ser sempre observada sem discussão quando proveniente da ordem natural das coisas, passível de questionamento quando esta última é subvertida. A observância da hierarquia decorrente da ordem natural das coisas torna inverídica qualquer proposição que subtraia a razão do superior, e a prova de tal proposição deve ser considerada impossível e inútil liminarmente.
Crítica, e não calúnia ou injúria
Isto vem, por sinal, a propósito de uma observação do blog de Carlos Castilho: “A tendência quase espontânea das pessoas é assumir posições, tipo a favor ou contra. O problema é que isso leva a uma simplificação da realidade, o que é um sinônimo de irrealidade. O sectarismo é uma simplificação da realidade política, que se não for compensada pela diversificação de percepções acaba levando a conflitos violentos, como golpes de Estado ou rebeliões” [“Como sobreviver à ‘guerra da informação’“, acessado em 23 nov. 2014]. E as posições costumam, normalmente, seguir o roteiro de definições que foi elencado logo acima. Na lógica antiga, muitas delas passariam por falácias não formais ou, no máximo, afirmações de crenças. Na racionalidade atual, passam a ser premissas fundamentais.
Antes que venha a pedrada no sentido de que estaria eu a defender a corrente política tal e qual, esclareço: as convicções de cada qual em relação a partidos e/ou candidatos, tanto de atração como de repulsão, são terreno indevassável, como deixou expresso inclusive Hans Kelsen em seu O contrato e o tratado em face da teoria pura do Direito, opúsculo a que tive acesso ainda em meus tempos de graduação na UFMG e que não vi em nenhuma outra biblioteca senão a da Casa de Afonso Pena. Dentro dos limites da legalidade e da constitucionalidade, a vontade do povo manifestada nas urnas, seja no âmbito federal, seja no âmbito estadual, seja no âmbito municipal, seja para o Executivo, seja para o Legislativo, merece respeito. A crítica, sempre presente e necessária em qualquer contexto democrático, não pode descambar para a calúnia ou para a injúria.
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Ricardo Antonio Lucas Camargo é advogado