Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Para dizer a verdade…

Em Pequeno Dicionário de Palavras ao Vento (2003), Adriana Falcão oferece ao verbete “Jornal” significado importante: “Algo que deveria dizer a verdade, somente a verdade, nada mais que a verdade”. Para dizer a verdade, é preciso, primeiramente, ter humildade discursiva. Tipo a de Michel Foucault, em A ordem do discurso (1970):

“Gostaria de me insinuar sub-repticiamente no discurso que devo pronunciar hoje, e nos que deverei pronunciar aqui, talvez durante anos. Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e levado bem além de todo começo possível. Gostaria de perceber que no momento de falar uma voz sem nome me precedia há muito tempo: bastaria, então, que eu encadeasse, prosseguisse a frase, me alojasse, sem ser percebido, em seus interstícios, como se ela me houvesse dado um sinal, mantendo-se, por um instante, suspensa. Não haveria, portanto, começo; e em vez de ser aquele de quem parte o discurso, eu seria, antes, ao acaso do seu desenrolar, uma estreita lacuna, o ponto de seu desaparecimento possível.”

Para dizer a verdade, é preciso ser movido pelo benefício da dúvida foucaultiana:

“Gostaria de ter atrás de mim (tendo tomado a palavra há muito tempo, duplicando de antemão tudo o que vou dizer) uma voz que dissesse: ‘É preciso continuar, eu não posso continuar, é preciso continuar, é preciso pronunciar palavras enquanto as há, é preciso dizê-las até que elas me encontrem, até que me digam – estranho castigo, estranha falta, é preciso continuar, talvez já tenha acontecido, talvez já me tenham dito, talvez me tenham levado ao limiar de minha história, diante da porta que se abre sobre minha história, eu me surpreenderia se ela se abrisse’.”

Para dizer a verdade, é preciso que o jornalismo econômico, por exemplo, contemplasse no mesmo espaço e com a mesma atenção os dizeres de Adriana Falcão, Antônio Carlos, Miriam Leitão e Delfim Neto. Por mais que eu tenha respeito pelos dois últimos, as lições mais divertidas sobre inflação foram transmitidas pelos dois primeiros. Adriana Falcão, em obra já mencionada, expressa: “Inflação: Complicação que resulta na menina querer uma boneca e o pai não poder dar”. Agora, com vocês, o grande músico e humorista, Antônio Carlos, o trapalhão Mussum: “Inflaçãozis é, em tradução, vaselina no forévis do povis”. Armínio Fraga e Guido Mantega se digladiaram, na temporada eleitoral, para convencer o público sobre o melhor caminho para o governo controlar a inflação e zelar pela responsabilidade fiscal. Faria bem ao debate econômico que muito nos toca, ouvir também o que disse Mussum, externando a voz dos miúdos, com sabedoria graúda: “Não quero saber do preço da manteiguis, eu quero é comer com gordura.”

Realismo esperançoso

Para dizer a verdade, é preciso, da mesma forma, investir em software ideológico, como alertava Décio Pignatari em Comunicação e Novas Tecnologias (1984). Dizia o poeta-professor naquela oportunidade que “o jornalismo é a academia de letras dos que leem neste país”. A técnica, longe de se opor a uma democratização da comunicação, concorre para sua aceleração. Complementaria o posicionamento de Pignatari com a noção comunitária de mídia como oficina do pensar e do fazer livres e alternativos. Parece-me que, neste sentido, a verdade jornalística se efetiva enquanto casamento harmonioso entre ato e palavra com vistas a celebrar a qualidade das relações sociais, no âmbito do espírito público. Assim sendo, vale a pena repensar algumas teses. Os teóricos marxistas da Escola de Frankfurt consideram a tecnologia como produto que traz para sempre a marca da dominação capitalista. Os pensadores que seguem a linha de McLuhan consideram a tecnologia de maneira eufórica, como capaz de realizar os sonhos de uma nova sociedade sem conflitos, com a distribuição igualitária dos confortos materiais e espirituais. Os primeiros, ferrenhos pessimistas; os últimos, otimistas ingênuos. Ambos transferindo para a tecnologia a força transformadora da história, enquanto a gente assiste, na atualidade, a um movimento ímpar no percurso da Comunicação, sendo esta potencializada com o advento das Novas Tecnologias Digitais: refiro-me ao desenvolvimento da “Inteligência Coletiva” proporcionada pela “sociedade em rede”.

Segundo Pierre Lévy, em A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço (1998), a ágora midiática se fortalece enquanto princípio ativo onde as inteligências individuais são somadas e compartilhadas por toda a sociedade, cujo canal de expansão se dá fundamentalmente pela nossa capacidade multinformacional avançada. “A Inteligência Coletiva”, na visão do filósofo francês, “é uma inteligência distribuída por toda parte, incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que resulta em mobilização efetiva das competências.” Desse modo, possibilita-se, via mídia integrada, a partilha da memória, da percepção, da imaginação, propiciando, nesse sentido, aprendizagem coletiva e troca de conhecimentos. Muito importante, igualmente, é tomar conhecimento do livro A sociedade em rede (2005), escrito por Manuel Castells. Nele, o sociólogo espanhol sugere o seguinte sentido para o título da obra em destaque: “A sociedade em rede, como a conhecemos atualmente, é o conjunto de seres humanos que partilham interesses comuns, ligados por pontos e ferramentas que facilitam a comunicação e a partilha de experiências entre si. Nesta partilha coletiva, cada indivíduo ruma ao descobrimento da sua identidade individual e coletiva.”

Para dizer a verdade, portanto, o jornalista precisa ser a ponte entre todas as fontes que alimentam a rede de saberes do mundo. Comportando-se, eticamente, como aprendiz da diferença, o comunicador não passa pelo arrogante papel de professor da indiferença. É virtude midiática, assim sendo, reconhecer cada um de nós como uma fonte singular da verdade. Como diria Adriana Falcão, em seu poético dicionário, verdade é “aquilo em que você acredita, mesmo que eu acredite no contrário”. Logo, a busca e o reconhecimento da verdade, no sentido plural, contemplam conflitos e desarmam confrontos. Trata-se de terreno, por excelência, do debate. E todo debate é antitabu. Conforme bem expressa a Revista Pepper, de Brasília: “Pimenta nos olhos dos outros é refresco. Nos seus, é informação.” Faz parte, portanto, do ofício jornalístico investigar e apurar para melhor noticiar e comentar. Com realismo esperançoso, os jornalistas dosam melhor suas críticas e seus elogios. O respeitável público agradece pelo referido zelo.

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Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor da Faculdade JK, no Distrito Federal, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários