Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A imprensa brasileira e Sherlock Holmes

A imprensa brasileira, em parte, adquiriu em sua essência uma valorização extremada à investigação. É natural que isto aconteça, uma vez que alguns fatos são totalmente ignorados pelas instituições encarregadas de investigar. O jornalista carrega em si uma ânsia por descobrir os fatos e gerar notícia a partir deles. É justo que este comportamento defina alguns critérios para valorizar um profissional. Entretanto, o jornalista não pode deixar de ser jornalista e se transformar em investigador, aquele que se compraz com as descobertas e as transforma em ideário de profissionalismo.

A imprensa, através dos veículos de publicação, consegue produzir sentido e, de certo modo, recriar a realidade a partir dos fatos relacionados, sobretudo nos noticiários. Pauta um assunto com a firmeza da agenda e a restrição das temáticas. Por este poder, define regras e roteiros de discussão para a população, influenciando a opinião pública. Naturalmente, a relação que se faz ao uso de poder da imprensa pode ser comparada à força de um dos poderes institucionais da República, como por exemplo, o judiciário.

A imprensa nunca esteve tão ávida em dissecar os fatos derradeiros dos escândalos de corrupção dos governos Lula e Dilma. Não consegue penetrar nas mais íntimas entranhas dos esquemas porque ainda existe uma barreira de respeito entre as instituições; e, de certo modo, a justiça desempenha, somente ela, o direito de investigar e punir os envolvidos em crimes de corrupção. Para a “imprensa Sherlock Holmes” não basta. É preciso provar o que não foi provado, resgatar fatos deixados para trás, retomar depoimentos dos quais não se sabe a veracidade.

Relação promíscua

Seletiva e obscura, a imprensa traça um caminho por onde não pode refletir ideologias políticas e causas partidárias, embora seja este o fator mais recorrente em sua trajetória. Cíclica é a sua tendência em exibir a imparcialidade e, no vão do rebanho, ovelhas desembestadas, acabam os veículos em optar pelo destino mais certo: Maria interesseira vai com as outras. Porque tudo neste país tem um cheiro de interesse velado. Quando bate, a imprensa encena ao mesmo tempo uma carícia. Quando puxa a corda do enforcado, reza para que ela se arrebente e liberte o infeliz.

Se investigar é tão natural, a imprensa deveria vasculhar o submundo da política de maneira geral, porque entre os anjos que pinta e aqueles que verdadeiramente existem, há uma aura menos pueril do que enxerga nossa vã visualização. Chega de apontar partidos e esconder outros. Chega de criar e recriar a noção de que a corrupção foi gerada no seio petista. A endemia que corrompe nossa sociedade está presente em todos os partidos ou pelo menos em sua maioria. O discurso parcial da imprensa é cada vez mais comprovado nas análises acadêmicas. E se a imprensa tem um lado, que o defina explicitamente.

Enquanto a imprensa concede voz aos políticos e partidos para se digladiarem em discussões inválidas, concede a eles o poder de jogar a peteca de um lado para o outro; o povo quebra o pescoço acompanhando o vaivém deste jogo, isto quando não faz questão de entrar na briga e engrossar o coro. Se para as senhoras e senhores não está claro, reafirmo mais uma vez: o povo está envolvido num jogo de cartas marcadas em que a imprensa concede a mesa, o uísque e o cigarro. Mas ele, o povo, sequer está sentado, mas acompanhando de pé as cartadas dos magnatas.

Holmes não estaria contente com a relação entre a imprensa brasileira e o seu nome ou ofício. Tanto porque os jornalistas brasileiros procuram o que lhes pedem as redações e editores; não procuram a notícia como deve ser publicada, mas antes um manifesto da posição do órgão, com suas redes de relacionamento e influência. Não fosse promíscua a relação entre imprensa e política, nada teria a declarar. Esta talvez fosse também a resposta do personagem de Arthur Conan Doyle sobre o quarto poder da República brasileira.

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Mailson Ramos é escritor