Um certo charme de artista, somado a um ar de relevância, por estar envolvido diretamente com os problemas e as soluções da sociedade, é, basicamente, como nos apresentam – e como queremos ser – o jornalista. Tipo ainda comum nas faculdades em crise, com tatuagens, cigarros e barbas. O problema é o momento; só na minha faculdade, nos últimos quatro anos, pelo menos uma dezena de eventos e mudanças curriculares, planejando como lidar ou tentar prever os novos caminhos desse campo, e principalmente relacionado com o impacto decisivo que as novas tecnologias causaram na velha estrutura de papel do jornalismo. As análises, geralmente, reduziram as mudanças da sociedade, que refletiram no jornalismo apenas como mudanças de mercado, não levando em conta que a crise pode ir muito além dos aspectos de modelos de negócios e ser também de narrativa, de forma.
No começo da faculdade, estagiava numa rádio com prestígio jornalístico. Era a época dos esquecidos massacres de 2012; todo dia, chegar ao trabalho significava ligar para a polícia e perguntar: “Quantos hoje?”. A fonte era absurdamente restrita, tudo por telefone, a história foi contada (em praticamente toda a imprensa) apenas com as fontes oficiais, exatamente o que se aprende a não fazer na faculdade. Os jornalistas mais experientes, às vezes, consultavam suas fontes particulares, verdadeiros oráculos e acrescentavam informações sem a possibilidade, por conta de uma soma gigantesca de tarefas, de se checar duas vezes; questionamentos que soavam ofensivos vindo da parte mais baixa da hierarquia.
Depois, tive a experiência em dois portais de notícias na internet. Mesmo que não fossem diretamente caça-cliques, 90% do conteúdo era feito através de agências de notícias, ou checando a concorrência; o trabalho – principalmente do estagiário, mas não só – se resume em copiar e colar, adaptando a forma e colocando o necessário para atrair os leitores; fotos chamativas, vídeos, títulos atraentes, quase beirando o sensacionalismo. Por mais sério que se pretenda, há uma verdadeira comoção nas redações quando a Bruna Marquezine vai à praia: a cota de cliques do mês está assegurada. Nada muito diferente do que sempre ocorreu na superficialidade desgastada do hard news. Sem ser sinais dos tempos, os leitores preferem notícias inusitadas e chamativas as supostamente relevantes, a diferença agora é que os recursos on-line permitem ver exatamente quantos, e por quanto tempo, internautas leram a notícia e antes não se sabia precisamente quanto tempo demorava para o jornal tornar-se banheiro de cachorro.
O jornalismo alimentando o que deveria combater
Ora, os problemas. Enquanto todo mundo dizia que é na prática que se aprende, foi a teoria que iluminou algumas questões. O excesso de notícia apenas reproduzida e compartilhada excessivamente nas redes sociais, aumentou a circularidade do que Gilles Deleuze e Felix Guattari chamam de “ritornelos”. Eles definem esse conceito em Mil Platôs como um ritmo, que se repetindo, produz um território simbólico, que não necessita de sentido. Por exemplo, os “coxinhas” e “petralhas”, essas palavras seriam dois ritornelos opostos que classificam o outro lado de forma limitada e definitiva; se alguém se estabelece dentro do território de algum deles, o outro lado desconsidera automaticamente qualquer argumento, não importa o quão bom for. E então, por vezes, o jornalismo que apenas reproduz o que uma agência noticiou, como se tivesse ele mesmo apurado, acaba reproduzindo ritornelos, por vezes, sem querer.
Quando um fato muito relevante acontece, um “ritmo” será seguido nos próximos dias aos fatos ocorridos nos portais noticiosos e nas redes sociais, um influenciando o outro. Primeiro, as notícias “objetivas” o mais rápido possível e explorando a notícia em excesso. Após um período de tempo, começa as análises na maioria das vezes superficiais e emotivas, pedidos de vingança, conspiratórias, culpando o governo. Depois contra-análises reclamando da superficialidade do que está sendo dito e invertendo a questão, embora também superficialmente. E num quarto momento as boas análises, mas o tema já está tão desgastado que passam despercebidas. Aconteceu isso, por exemplo, com o ataque ao Charlie Hedbo (primeiro alguns queriam guerra, depois análises contra o humor do jornal e a favor dos muçulmanos na Europa…) ou com a morte de Eduardo Campos, na Copa etc…
Nesses momentos, “passam” ideias que as vezes os próprios jornalistas e veículos não concordam, como, por exemplo, “terroristas”, “bandidos”, “corruptos”, palavras puramente ideológicas que excessivamente repetidas criam aparentes verdades absolutas. Isso, somado à ilusão da rede como imparcial e a sua superficialidade, criam o que Deleuze chama de microfacismo da clareza. O outro desconhecido não mais existe; é isso e pronto. Sem a possibilidade da dúvida, a certeza absoluta provoca radicalismos. Isso ficou muito evidente nas eleições, basta ter participado de algum debate (claro, sem desconsiderar a particularidade do momento histórico).
Ou seja, o jornalismo alimentando exatamente o que ele deveria combater. E isso feito, geralmente, por ótimos jornalistas que se mediocrizam nessa estrutura. Existem alternativas realmente boas sendo experimentadas, que merecem atenção – e afinal, por que a insistência nesse modelo exportado de jornais diários se nem financeiramente ele é seguro?
Sei que essas reflexões de desilusão no ano de formatura talvez não sejam úteis para jornalistas experientes que sabem como é o dia-a-dia. Mas, para o leitor que não tem exatamente o conhecimento de alguns processos internos e principalmente, e para o estudante que está prestes a escolher o jornalismo por motivos errados, podem ser de grande ajuda.
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Raul Duarte é jornalista