Foi um breve comentário, no meio de uma daquelas entrevistas tumultuadas sob o cerco cerrado de microfones e câmeras: na quarta-feira (15/1), um dos advogados do ex-diretor da área internacional da Petrobras, Nestor Cerveró, que o acompanhara em seu depoimento à Polícia Federal, disse que seu cliente passava por dificuldades financeiras. “Ele era um diretor da Petrobrás, que ganhava mais de R$ 100 mil por mês. Em março do ano passado [quando foi destituído do cargo] ele deixou de receber isso”.
E pronto, passamos à previsão do tempo, ou aos gols da rodada.
Não seria o caso de perguntar que dificuldades financeiras poderia ter um sujeito que ganhava mais de R$ 100 mil por mês, ainda por cima numa empresa como a Petrobras, esse símbolo de uma luta política que envolve a massa dos que ganham salário mínimo?
A vida é mesmo assim?
Manifestei minha surpresa numa rede social e recebi comentários que, de algum modo, tentavam justificar a situação: as pessoas se acostumam a um padrão de vida e quando o perdem sentem o baque; grandes executivos e grandes artistas, atletas e modelos ganham bem mais que isso, escandalizar-se com esses salários é esquecer o lucro estratosférico do grande capital.
Sim, pessoas se acostumam ao mundo da fantasia. O baque de Maria Antonieta foi terrível.
Mas, não: escandalizar-se com salários astronômicos é uma forma de puxar o fio dessa meada que vai dar na crítica aos lucros das grandes corporações, especialmente as do mercado financeiro. Portanto, na crítica ao próprio sistema.
Apenas a título de exemplo, volta e meia assistimos a conselhos sobre a necessidade de fugir dos juros extorsivos do cartão de crédito, apresentados como um dado da realidade. Nunca vemos uma única reportagem a discutir os motivos que levam à cobrança de juros tão elevados.
Alimentando a engrenagem
Altos funcionários, altos executivos – inclusive na mídia, nunca é demais lembrar – recebem salários compatíveis com a sua tarefa de fazer esse sistema girar. É o mesmo sistema que remunera artistas, atletas e modelos, que alimenta a engrenagem do mundo do espetáculo, tão lucrativo para tantas empresas.
Discutir o tamanho dos salários não é só uma forma de escancarar a desigualdade social. É demonstrar que quem ganha exageradamente acostuma-se a um padrão de vida que ignora a realidade da maioria das pessoas. Isso, em outros tempos, se chamava alienação. O que é particularmente grave quando se trata de gestores de empresas fundamentais para a vida do país.
O noticiário sobre a Petrobras gira em torno de um escândalo de corrupção. Não seria útil informar quanto ganhavam os funcionários envolvidos nessa história? Será que o público não se espantaria?
Retomando uma velha pauta
Em 1976, o Brasil começava a viver a tímida abertura inaugurada no governo Geisel. Foi quando O Estado de S.Paulo editou uma série de reportagens que ganharia o Prêmio Esso daquele ano: “Assim vivem os nossos superfuncionários”, coordenada por Ricardo Kotscho e publicada entre os dias 1º e 4 de agosto, foi possível graças à suspensão parcial da censura à imprensa, como nota Marcio Castilho em seu estudo de caso (ver aqui), e popularizou o termo “mordomia”.
Era uma espécie de radiografia do poder. O relato sobre o estilo de vida daquela turma não poderia ser nada menos que chocante, especialmente pelo contraste com a condição da maioria das pessoas, ainda mais sob uma ditadura.
Claro, tratava-se ali de funcionários públicos. Mas a lógica é a mesma.
O advogado de Nestor Cerveró mencionou o antigo salário de seu cliente porque deve achar a coisa mais natural do mundo uma remuneração como aquela num país como o nosso. Forneceu, inadvertidamente, um belo gancho para a retomada de uma extensa pauta.
******
Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)