Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Contra ditadura, Wolinski cedeu desenhos

Uma sequência da história em quadrinhos A Vida Sentimental de Georges, que a revista Bondinho, de São Paulo, publicou em 17 de fevereiro de 1972, soa hoje como aterradoramente premonitória.

Georges, o Espancador, personagem do cartunista francês Georges Wolinski, entra calmamente no banheiro de um apartamento e mata a presidente vitalícia da França, que está nua na banheira, desprotegida e indefesa.

O trecho remete, é claro, ao massacre na sede do jornal francês Charlie Hebdo promovido por extremistas islâmicos na quarta-feira passada (7/1) e que deixou 12 mortos. Entre eles, Wolinski, de 80 anos.

A curiosidade vem acompanhada de um detalhe histórico pouco conhecido: Wolinski havia se engajado na luta contra a ditadura no Brasil ao ceder gratuitamente seus quadrinhos e cartuns para as páginas de Bondinho, Grilo, Status e Status Humor.

“Seu personagem Georges, o Espancador era um sádico que lembrava os muitos torturadores brasileiros em ação naquele momento”, contou em entrevista a este repórter o jornalista e psicanalista Roberto Freire (1927-2008), diretor da Arte & Comunicação, que editava as revistas Bondinho e Grilo no Brasil.

Por causa dos quadrinhos de Wolinski, o número 32 de Bondinho, de 6 de janeiro de 1972, foi apreendido pela polícia. Na capa, Georges, o Espancador, escondido em uma esquina, espera alguém com um taco de beisebol em posição de ataque. E diz ao leitor: “Eu espanco as pessoas porque sou um espancador. O melhor da praça.”

Para conseguir os direitos de autores europeus que alimentassem suas publicações, Freire viajou para Roma e Paris em outubro de 1971.

“Na primeira, encontrei-me com Guido Crepax. Na segunda, com Georges Wolinski”, contou o editor.

Wolinski impressionou bastante Roberto Freire, tanto pelo seu temperamento anárquico quanto pela generosidade.

“Ele era editor da humorística Hara-Kiri, uma das mais importantes revistas de humor da Europa, e já colaborava na recém-nascida Charlie. Ele havia estourado com uma personagem de sucesso no ano anterior, lançada em parceria com Georges Pichard: as aventuras eróticas de Paulette, publicadas em capítulos pela Charlie, a partir de 1970”, relembrou Freire.

Para convencer o parceiro Georges Pichard a liberar Paulette por um preço baixo, Wolinski “pegou o telefone e foi logo avisando que o Brasil não é um país rico e nossa editora, menos ainda”.

Brigitte Bardot

Paulette se tornou em pouco tempo célebre pelo traço sensual de Pichard e por não ter nenhum pudor para se exibir a todo momento. Seu ilustrador foi uma das figuras-chaves da revolução sexual dos quadrinhos europeus da segunda metade dos anos de 1960.

A personagem era uma Vênus de formas generosas, andava descalça e tinha lábios de Brigitte Bardot. Nas histórias, terminava sempre com suas roupas sugestivamente em farrapos. Como Justine, de Sade, era vítima de intermináveis armadilhas. Ela vivia como uma rica herdeira que é raptada e, depois, encontra a cura para o tédio burguês em aventuras sexuais pelo mundo. Virou alvo perfeito para bandidos tarados.

“Tenho fome, tenho frio, tenho sede. Preciso de calor humano”, repetia ela. Sua melhor amiga e companheira de infortúnios era um velho chamado Joseph, bizarramente transformado em uma bela e lânguida morena por uma toupeira mágica míope. Apaixonado(a), por si mesmo(a), Joseph não sabia mais se queria voltar a ser um velho ou permanecer num corpo de mulher.

A personagem teve um álbum lançado no Brasil em 1973, pela Arte & Comunicação, e dois volumes com suas melhores histórias, pela L&PM, nos anos de 1990.

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“Não quero dinheiro nenhum, quero ir ao Brasil”

Em outubro de 1971, Roberto Freire (1927-2008), então diretor da Arte & Comunicação, foi à casa de Wolinski, em Paris. Ele queria comprar direitos de publicação de alguns personagens publicados nas revistas satíricas Hara-Kiri e Charlie, esta última criada em 1970.

No ano seguinte, Freire relatou o encontro em uma edição de O Bondinho. Leia trechos abaixo:

“Habituado ao formalismo francês, telefonei para marcar o encontro. ‘Que encontro? Vem logo, tô te esperando, o Brasil fica longe!’, Wolinski interrompeu de cara o meu formalismo. Ele trabalha em sua casa, num bairro tranquilo de Paris, onde existe um belo parque, o Saint-Mandé (…). Eu ia lhe falar sobre Georges, o Espancador, mas ele mesmo se adiantou e perguntou timidamente: ‘Conhece o Georges?’ ‘Conheço.’ ‘Gosta?’ ‘Gosto.’ ‘Quer comprar?’ ‘Quero. Quanto?’ ‘Não quero dinheiro nenhum, quero ir ao Brasil. Espera. Tenho uma ideia, vocês me pagam no Brasil quando eu for para lá. Assim, só tenho de pensar na passagem. Vocês não precisam pagar nada agora, que tal?’ ‘Mas e se você não puder ir ao Brasil?’ ‘Minhas piadas foram.’ ‘Não é justo.’ ‘Mas é engraçado.’ E me fez falar longamente do Brasil. Resolvi gozá-lo: ‘É muito barato. Não custa tentar.’ ‘Barato? Você não sabe o que é não conhecer o Brasil, não conhecer esse senhor Millôr Fernandes…’” (G.J.)

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Gonçalo Junior é autor de A Morte do Grilo (Peixe Grande)