Engana-se quem esperava a histórica edição de número 1.178 do Charlie Hebdo recheada da mais pesada agressividade ao islã ou aos extremistas que mataram 12 integrantes de sua Redação.
O jornal semanal mantém o estilo provocador, mas é quase singelo.
Os traços e o humor satírico de Charb (Stéphane Charbonnier) e a edição de Georges Wolinski, ambos mortos no ataque, farão falta à publicação.
Mas o jornal mantém as características e a personalidade gráfica graças ao estilo do chargista sobrevivente Luz (Renald Luzier), veterano na equipe que se atrasou e não estava na fatídica reunião de pauta em que seus colegas foram assassinados.
Foi ele quem desenhou a capa dessa edição e dará continuidade ao estilo gráfico. Luz não titubeou em contrariar as leis muçulmanas que proíbem representações do profeta Maomé, mas optou por desenhá-lo com uma lágrima escorrendo no rosto.
Quem acompanha o histórico polêmico do Charlie facilmente reconheceu o desenho. Luz, afinal, é o cartunista cujas charges, em 2011, foram consideradas uma ofensa por extremistas. Na ocasião, a sede da publicação foi alvo de uma bomba, atirada por extremistas.
As páginas internas usam a linguagem das charges e cartuns para fazer desta edição uma mescla de registro histórico com homenagens aos colegas mortos, tudo sempre alinhado ao peculiar humor ácido do semanário, que nunca poupou nada nem ninguém.
Políticos que participaram das manifestações do último domingo foram lembrados no quadro “balanço dos dias posteriores”.
Os colegas mortos foram citados no quadro “Princípio das manifestações”. E os manifestantes foram agraciados com o título: “Mais gente com Charlie do que na missa”.
A edição conta ainda com textos e desenhos póstumos e alguns inéditos de Charb, Cabu (Jean Cabut), Tignous (Bernard Verlhac), Honoré (Philippe Honoré), além do lendário Wolinski. Duas páginas são dedicadas a eles.
Embora não tão impactante como em outras edições, o jornal dá sinais de que não desistirá de seus conceitos.
Depois de poucos dias de luto e de algumas adaptações, a equipe, em homenagem aos colegas, crava no editorial: “Faz uma semana que Charlie, o jornal ateu, faz mais milagres que santos e profetas juntos” – mantendo com as palavras o humor provocador de seus traços.
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Fabio Marra é editor de “Arte” da Folha de S.Paulo