O problema da mídia é o fato de ela girar em torno de seu próprio cerco. O que pretendo provocar com tal assertiva diz respeito à constatação milenar que dá conta de nenhuma obra de arte produzir mortes de inocentes (ou mesmo, de culpados). O único registro está na conta da narrativa de Göethe (As aventuras do jovem Werther) que teria induzido, na Europa, entre fins do século 18 e início do 19, jovens para atos suicidas… Bem, o fato é risível, pois o romance continuou sendo publicado, ao longo de séculos seguintes, e, nada mais, ocorreu; portanto, a menção feita não se sustenta. Foi, na época, o conhecido sintoma do “mal do século”.
Com base, pois, no relatado acima, vou encarar uma questão polêmica. A publicação Charlie Hebdo, que semanalmente gerava 60 mil exemplares, na edição pós-atentado passou para 5 milhões. Imagino a renda fantástica que, em uma semana, o atentado rendeu aos novos ocupantes. Nenhuma aplicação financeira, em qualquer bolsa de valores, renderia tanto lucro. Confesso que, apesar de reconhecer que, no tabloide francês, havia seres talentosos, considero exagerado o tom crítico-humorístico. Tenho bem, na memória, quanto eu esperava a nova edição, no Brasil, do Pasquim, no auge da ditadura. Igualmente, nele figuravam seres talentosos que produziam um olhar radical sobre a situação do país. Todavia, não havia agressões a religiões. Deixo claro que não creio em nenhuma. Para mim, deus é uma extensão do homem.
Minha questão, portanto, é simples: em nome de quê o tabloide francês ridiculariza Maomé, o Papa, Alá, Jeová? Por que a luta, via humor cáustico, não se dirige a governantes do Estado Islâmico, já que a questão é essa? Ao ridicularizarem Maomé, eles atingem todos os muçulmanos não-terroristas. Isto não é liberdade de expressão, mas burrice.
A liberdade de expressão não exime ninguém de consequências destrutivas. Para tanto, o princípio da liberdade de expressão deve estar regulada pelo senso de responsabilidade que, em nada, se confunde com autocensura. Na minha percepção, a mídia (ou a “grande imprensa”) ficou tolhida na sua própria “camisa de força” e, com isso, perdeu o foco do distanciamento crítico.
Sem censura
Acho que os “talentos franceses” precisam aprender com as inteligências brasileiras como Henfil, Ziraldo e outros que compunham a equipe do Pasquim, embora os brasileiros citados tenham sido inspirados pelos franceses, agora mortos. Isto não é saudosismo, é análise. É claro que qualquer forma de expressão deve ser livre. Mas será que desenhar uma charge de uma mulher muçulmana coberta pela “burka” levanta suas vestes, exibindo o órgão genital, é humorismo? Qual é a eficácia “artística” dessa concepção, a exemplo do exposto na edição pós-atentado? Quantas vidas inocentes (cidadãos judeus, católicos e muçulmanos) serão, adiante, alvo de novos atentados?
Há uma lição a ser aprendida: a diferença entre crítica e agressão gratuita. A mídia não soube lidar com essa diferença. Será que a irreverência ilimitada do Charlie Hebdo justifica a morte de 17 inocentes? Não! Se admitirmos que arte pode matar, estaremos perdidos.
Vou além: chargistas são criadores midiáticos. Nenhum deles se compara a grandes pintores, grandes romancistas, grandes dramaturgos, grandes escultores. Chargista é apenas um criador “inteligente” (e, por vezes, não) do cotidiano e, como tal, sujeito a pressões impulsivas que cegam a percepção mais profunda.
E mais: o Pasquim, enquanto pôde, resistiu contra as forças da ditadura. Charlie Hebdo nunca enfrentou censura, nem ditadura. Ao contrário, ajudou a incentivar o terrorismo. Peço que quem leia esta reflexão analise, de modo isento de paixões.
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Ivo Lucchesi é ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da FACHA (RJ)