Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O pobre e a liberdade de expressão

Nos últimos dias, muito se discutiu sobre liberdade de expressão e de imprensa, tema capitaneado a partir do fatídico atentado ao jornal humorístico Charlie Hebdo. No miolo das discussões, balizando o assunto, o tal do “politicamente correto” era usado para definir posições. Ao mesmo tempo, fomos presenteados pelo jornal O Globo com duas pérolas que fazem valer a pena continuar tratando desse assunto, porém por um outro prisma: o preconceito que se manifesta na imprensa sob a pecha “é apenas um artigo de opinião”.

Baltasar Gracián, um daqueles autores capazes de influenciar gente graúda como Voltaire, Lacan, Schopenhauer e Nietzsche, o que não é pouca coisa, alertava sobre a nossa mania de aplaudir “as tolices de um rico enquanto não damos sequer ouvidos às máximas de um pobre”. Diga-se de passagem, ele mesmo, Gracián, um perseguido que fora obrigado a escrever sob pseudônimo e, quando descoberto, fora proibido de escrever. Sabia o que falava.

Séculos depois (quatro, para ser mais exato), continuamos cometendo a mesma tolice. Hildegard Angel, colunista social (nome pra lá de infeliz, já que de social inclui apenas a elite), mantém um blog com conteúdo reproduzido no site do jornal O Globo. Incomoda-se e sente medo, com razão, dos arrastões nas praias do Rio de Janeiro. Mas saca do arcabouço mais obscuro do senso comum as soluções para o problema e orienta o poder público local como agir: proibir que os ônibus da região mais desfavorecida da cidade cheguem às praias da zona sul carioca e, caso não surta efeito, radicalizar cobrando entrada nas praias do Leme, Copacabana, Ipanema e Leblon. Recebeu críticas, tirou o texto do ar.

Sim, segregar e delimitar espaços foi, e ainda é, a forma mais comum de solucionar os problemas sociais para aqueles que não percebem as causas, nem sentem os efeitos mais perversos da desigualdade social. Sim, se eu desconheço a causa e não sinto os efeitos mais perversos, por que não rir deles? Posso ironizar, publicar e propagar a ideia de que somos diferentes. É engraçado, não é? Nós e aqueles, os pobres… Tão diferentes! Nada além da segregação pelo humor num espaço já segregado, a imprensa. E assim foi feito.

Besteiras e desrespeitos

Mesmo jornal, mesma semana. Agora por Silvia Pilz, também em O Globo, que diz o que pensa, odeia regras, prefere parar carro em vaga de deficiente sem me sentir culpada e afirma que bom senso está em falta no mercado (segundo definição dada por ela mesmo). Para ela, pobre é dissimulado “desmaia em velório, tem queda ou pico de pressão. Em churrascos, não”. Pobre é hipocondríaco, “quer ter uma doença. Problema na tireoide, por exemplo, está na moda. É quase chique”. Pobre fica “obcecado pelo lanchinho que o laboratório oferece gratuitamente depois da coleta”, mas “a grande preocupação do pobre é se procriar”. Estereotipar parece ser bem divertido para ela.

Falar o que pensa é notável. Ofender-se e ter a possibilidade de reagir, também. Foi, portanto, duramente criticada. Respondeu lançando um “verdade dói”, e se defendeu com “somos todos preconceituosos” e “no humor vale tudo”.

Mas, calma lá. Obviamente que não foram poucos que as defenderam, e termos como “perseguição” e “politicamente corretos” foram usados para explicar que tudo não passa de um tremendo oba-oba. De minha parte, sempre quis saber por que grande parte das pessoas defende a liberdade de imprensa e expressão a partir dos exemplos mais deploráveis?

Diferentemente destes, tendo a ver de outra forma: o “politicamente correto” não existe. O que parece existir de fato é uma carranca, um totem, uma abstração qualquer na cabeça de quem propaga o ódio, incita a violência, reforça os preconceitos e que acha que perdeu seu direito fundamental: o de diminuir as pessoas, excluir as minorias, desprezar o diferente. A supressão do direito de desrespeitar o outro e continuar desrespeitando, direito esse que nunca nem ninguém deveria ter tido e que, se alguém hoje toma a atitude de alertá-lo ou criticá-lo por ter feito, que seja um simples “ei, isso que tu tá falando é bem ofensivo pra muita gente”, tomam pra si como se fosse o claro cerceamento de um de seus direitos mais fundamentais: o de ofender.

Não há agremiação do politicamente correto, não há Ministério do Politicamente Correto, nem em curso algo como Campanha Nacional da Correção Política, tampouco a determinação jurídica de que não podemos proferir opiniões. O que há são besteiras e desrespeitos publicados e difundidos aos quatro ventos como se não houvessem leitores ou ouvintes. Mas hão.

O “politicamente correto” não passa de um conceito figurativo presente nas mentes de quem odeia ou desrespeita, usado para eximirem-se das inúmeras bobagens que dizem e escrevem por aí, numa espécie de (auto) ilusão quanto a uma hipotética perseguição, policiamento e cerceamento social dos chatos. Respeitarem o próximo, o não tão próximo, o diferente e os direitos dos outros não passa por suas cabeças. E cabe também aos jornais, não apenas a sociedade, desencorajá-los.

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Alexandre Marini é sociólogo