Conforme prometido, na última quarta-feira [14/1] Charlie Hebdo voltou às bancas. Sem se dobrar às ameaças do terrorismo islâmico nem às recomendações de prudência sopradas de múltiplas direções, voltou do jeito que sempre foi: um “jornal irresponsável”, impudente, imprudente, debochado, ecumenicamente iconoclasta e rabelaisianamente excessivo. Na capa, simples, provocativa e audaciosa, a indefectível figura do profeta Maomé. Mas um Maomé diferente, como bem notou o crítico social Paul Berman.
De túnica branca, uma expressão de horror estampada nos olhos esbugalhados, pelo rosto do profeta escorre uma lágrima, que não parece de crocodilo e nos induz a desconfiar que ele, empunhando o mantra “Je suis Charlie Hebdo”, solidarizou-se com as vítimas do atentado da semana passada. Encimando o cartum, a mensagem de que “tudo foi perdoado”.
Quem afirma que “tout est pardonné”? O profeta ou os editores do jornal? Seria admissível imaginar que o profeta, por ser magnânimo, estivesse prestando solidariedade às vítimas do atentado? Ou será que ele apenas perdoara os terroristas que cometeram a chacina em seu nome?
Charlie já o havia caricaturado aos prantos (e de túnica preta), lamentando-se de como “é duro ser venerado por cretinos”. Apesar de antirreligiosos, e sobretudo anticlericais, os humoristas do Charlie ainda preferem o profeta aos fanáticos reducionistas que se empenham em transformar o Islã numa seita satânica e homicida; daí porque frequentemente o retratam de forma simpática e sempre avacalham os jihadistas e seus correligionários.
“Numa semana, Charlie, jornal ateu, realizou mais milagres que todos os santos e profetas juntos.” Assim começa o editorial da mais esperada e lida edição do Charlie. “Do que mais temos certeza” – prossegue o editorial – “é que o jornal que vocês têm nas mãos é o que sempre fizemos, na companhia daqueles que sempre o fizeram.” Ver e ouvir os sinos da Notre-Dame dobrarem em homenagem aos humoristas assassinados foi, dos milagres, o mais engraçado. Os ímpios sobreviventes do massacre devem estar rindo até agora.
O supremo milagre foi, naturalmente, a marcha de domingo passado, a maior da história da França, unindo anônimos e celebridades planetárias, adversários políticos, humildes e deficientes físicos, incréus e dignitários religiosos, e até líderes de regimes repressores cuja presença faria mais sentido numa passeata a favor da censura, em Pyongyang.
Bom negócio
A adesão do presidente do Gabão, de um ministro russo e dos premiês turco e húngaro foi motivo de chacota na redação. Assim como as baboseiras ditas aqui e ali sobre as causas do atentado, os limites da liberdade de expressão e o respeito incondicional às religiões. Sem falar nas teorias conspiratórias que ao longo da semana pipocaram na mídia alternativa de esquerda (www.informationclearinghouse.info) interpretando o atentado como uma conspiração internacional planejada pela CIA e os serviços de inteligência da França, visando, por um lado, a minar a política externa independente de François Hollande e, por outro, a aumentar a popularidade do presidente francês, em queda livre até o dia 7, e intensificar ainda mais a islamofobia na Europa.
Fruto da subversão anárquica de Maio de 68 (como o Libération, seu abrigo provisório), Charlie herdou a intransigência libertária e o humor bête et méchant da revista Hara-Kiri, sem similares fora da França. Pressionada pelo governo, Hara-Kiri preferiu fazer jus ao nome a moderar seu modus insultandi; Charlie acomodou-se uma vez, deu-se mal, não quer repetir o erro.
Em julho de 2008, Siné, um dos humoristas de Hara-Kiri que foram à forra criando o Charlie Hebdo, fez um gracejo com o filho do então presidente Nicolas Sarkozy, que pouca ou nenhuma repercussão teria se um jornalista picareta, ligado à família presidencial, não o tivesse transformado num cavalo de batalha pela TV. Baseado numa informação publicada no Libération, segundo a qual Jean Sarkozy, prestes a casar-se com a herdeira da cadeia de lojas de artigos eletrônicos Darty, pretendia converter-se ao judaísmo, Siné comentou em sua crônica semanal: “Esse rapaz vai longe”.
Acusado de antissemitismo (a demonização padrão da época) e “inimigo do sucesso social” por, entre outros, o poseur Bernard-Henri Lévy, Siné foi pressionado a pedir desculpa pelo editor Philippe Val. Já estava quase conformado com a ideia de escusar-se pela eventual ambiguidade de sua zombaria quando soube que um texto redigido por parte da redação sairia ao lado do seu mea-culpa. Injuriado, esbravejou: “Prefiro cortar meus testículos!”, e saiu porta afora para nunca mais voltar. A prosápia de despedida de Siné virou capa na semana seguinte. Grotescamente divertida, anunciava: “Encontramos os testículos”.
A mídia e a intelectualidade francesas se dividiram em apoio e repúdio ao cartunista. Dos processos em que se envolveu, como réu e vítima, saiu sempre vitorioso. Além de um convincente currículo como inimigo histórico do antissemitismo, Siné só pegou juízes sensíveis à primordialidade da liberdade de expressão. Charlie foi obrigado a lhe pagar € 90 mil, por ruptura abusiva de contrato.
Assumindo orgulhosamente todas as carapuças (“velho babaca”, “lixo”, “senil”, “misógino”, “pedófobo”), Siné lançou seu próprio semanário humorístico, Siné Hebdo, que há três anos virou mensal. Aos 86 anos, hoje, mais do que nunca, está seguro de que fez um bom negócio deixando a redação do Charlie. Quem tem testículo tem medo.
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Sérgio Augusto é colunista do Estado de S.Paulo