Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Deserto de ‘hashtags’

A discussão no Fórum Econômico Mundial era sobre a deflação e suas consequências nefastas. Nos Estados Unidos também. Mas a deflação que consome a mídia aqui é outra. O chamado Deflategate é a suspeita de que o time favorito para ganhar o Super Bowl no próximo domingo (1/2), o New England Patriots, usou bolas com menos ar do que determina a liga do esporte mais popular do país. A superestrela do time é Tom Brady, marido de Gisele Bündchen e, quando ele falou ao país na quinta-feira (22/1), a mídia tratou o evento como se ele fosse Franklin Roosevelt anunciando a entrada na Segunda Guerra. Para em seguida deitar e rolar com o trocadilho fácil, já que balls em inglês é o termo vulgar que designa aquela região gêmea da anatomia masculina. O próprio Brady tentou esvaziar a pressão com uma observação canhestra. Disse que tudo ia acabar bem, afinal, não se tratava de uma ameaça do Estado Islâmico.

A coincidência da observação de Brady com a degola de mais um refém do Estado Islâmico é mais que ironia; é um sinal da distorção da qual a mídia é cúmplice. Muito se debateu sobre outra coincidência, a do massacre na Charlie Hebdo em Paris com o massacre muito mais sangrento de Baga, na Nigéria, pelo Boko Haram. A área é remota e tão perigosa que, na ausência de jornalistas, usamos os números fornecidos pela Anistia Internacional, 2 mil mortos. Mas a Nigéria não é um país remoto, é a maior nação africana, com 180 milhões de habitantes, o triplo de população da França. O risco de desestabilização da Nigéria é real e o medo pode inspirar os nigerianos a eleger um general e ex-ditador seu novo presidente no dia 14 de fevereiro. Mas esta complicação não cabe num hashtag. De fato, enquanto o mundo declarava #JeSuisCharlie no dia 7 de janeiro, os nigerianos foram mais informados sobre Paris do que sobre o hediondo massacre de Baga. Quem apurou isso foi Ethan Zuckerman, diretor do Centro de Mídia Cívica do Massachusetts Institute of Technology.

Imaginem se, na semana de um massacre de 2 mil brasileiros na Amazônia, a cobertura da nossa mídia se concentrasse no atentado em Paris. Se não tivemos o infortúnio dos nigerianos, caminhamos para o ecossistema que nos mantém concentrados na deflação trivial, não na que afeta nossas vidas. O desmonte do modelo de negócio que sustentava o jornalismo está chegando à maioridade sem que um novo modelo tenha se revelado viável. Mas, como os inebriados frequentadores de uma boate que correm para a saída de emergência num incêndio, a mídia global continua a produzir caricaturas de conteúdo informativo numa troca faustiana que não produz estabilidade, apenas embaraço e alienação. Isto fica evidente nos esforços do jornalismo latino-americano de imitar campeões anglófilos de cliques, como o Daily Mail britânico e o BuzzFeed americano. Mas é uma ânsia de jogos vorazes. Não há mistura de vulgaridade e escatologia com reportagem íntegra que leve a mídia construída sobre credibilidade a chegar ao Olimpo digital de 100 milhões de visitantes mensais. O próprio fundador do BuzzFeed, Ben Smith, disse ao jornalista Michael Wolff não esperar que sua cria esteja viva daqui a três anos. Então, por que investir em reportagem investigativa e usar a respeitada marca de uma organização jornalística na rede social para destacar as recomendações de Miley Cirus sobre masturbação?

História e revolução

Na semana passada, passei a acompanhar mais intensamente a mídia argentina. Queria ler sobre a morte suspeita do promotor Alberto Nisman na véspera de fazer uma denúncia grave sobre a presidente Cristina Kirchner. Uma pesquisa revelou que a morte do promotor é acompanhada pela vasta maioria do público argentino. No país abalado pelo que parece ser uma crise das instituições democráticas, a mídia continuava a destacar histórias de gatinhos pela rede social.

É uma mídia que precisa de um vídeo de celular mostrando a degola de uma mulher na Arábia Saudita para voltar ao fato de que de lá saiu a inspiração e o patrocínio de parte do terrorismo sunita nos últimos 20 anos. É o que a excelente jornalista nova-iorquina Brooke Gladstone chama de preconceito de narrativa. O massacre da Charlie Hebdo pode ser encapsulado, o da Nigéria não.

Não haveria primavera egípcia sem o Facebook. Mas, assim como gatinho dançando não é jornalismo, agitar não é fazer revolução ou mudar a história. E isto ficou dolorosamente claro na repressão às manifestações do terceiro aniversário dos protestos na Praça Tahrir. O Egito “convocado” via Facebook é governado por um general mais sangrento do que Hosni Mubarak.

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Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York