Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O paradoxo Lisa Simpson e a gênese do ódio

Como uma notável defensora dos direitos dos animais pode gostar do desenho Itchy & Scratchy (Comichão e Coçadinha), uma série de humor ultraviolento protagonizada pela versão “tarantiniana” de Tom e Jerry? Numa observação superficial, a contradição lógica salta aos olhos e dá margem a questionamentos quanto ao perfil da personagem criada por Matt Groening ou ao caráter da própria Lisa Simpson, personagem da série de TV Os Simpsons. O comportamento é repreensível para uma menina tão comprometida com causas nobres e que faz a linha politicamente correta.

Mesmo no campo da metalinguagem, tal conduta é perfeitamente normal, já que se trata de uma obra de ficção. E como toda produção artística não deve ser censurada, sua apreciação é “restrita” ao campo estético. Ser fã de Itchy & Scratchy não coloca “em xeque” os valores de Lisa, muito menos diminui sua representação. Pelo contrário: reforça suas crenças, desconstrói estereótipos e a aproxima de um ideal social condizente com a estrutura do estado de direito democrático. O direito à livre expressão e à liberdade de pensamento são pilares da vida social, valores semeados desde a antiguidade clássica e que, a partir do século 18, foram assegurados pelas constituições no mundo ocidental.

O paradoxo Lisa Simpson pode servir como base na defesa do Charlie Hebdo e de tudo que ele representa. Definitivamente, não pode haver limites para o humor e nenhuma outra manifestação artística. Em nossa sociedade de leis, o contraponto é reservado ao campo jurídico. Mas, existem outras formas menos burocráticas de reivindicação e protesto, a exemplo da mobilização social, boicote organizado ou então “beber o veneno da cobra” e usar a mesma arma contra o autor, grupo, instituição (seja lá quem for) que insultou, provocou, constrangeu ou causou danos morais. Nesses termos, merece registro o concurso promovido pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) para selecionar uma “canção-resposta” à música “Quem banca é viado”.

Arte iconoclasta

É difícil compreender as razões pelas quais os irmãos Chérif e Saïd Kouachi promoveram o massacre na redação do Charlie Hebdo. É, de igual modo, difícil ter uma noção exata da capacidade de atuação e potencial bélico do Estado Islâmico e dos grupos jihadistas espalhados pelo mundo. No entanto, é preciso lançar um olhar crítico para a gênese de tanto ódio. O escritor uruguaio Eduardo Galeano sustenta que todo país que foi colônia se tornou uma nação subdesenvolvida. Como o inverso se aplica? As antigas metrópoles mercantilistas estão a salvo? Como a política externa e as transações comerciais influenciam a segurança doméstica das superpotências?

A doutrina marxista (basicamente) define a história da humanidade pela luta de classes. O mesmo Karl Marx lança luz sobre a alienação social e discute como a religião pode se transformar no “ópio do povo”. Uma combinação de elementos mais explosiva do que nitroglicerina. Não é preciso ser um grande pensador, nem ter vivido experiências tão traumáticas como o personagem Kurtz [seja no livro Coração das Trevas, de Joseph Conrad, ou no filme Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola] para compreender que a barbárie e a mitologia da guerra fazem parte da condição humana.

Entretanto, mesmo em meio à insegurança, não podemos nos curvar diante do terror. A arte em excelência só existe se for iconoclasta e transcendental. Por outro lado, a imprensa nunca, em hipótese alguma, deve ceder à autocensura, nem se habituar à falta de liberdade. Por isso, mais do que nunca, tenho certeza que Lisa Simpson diz: “Je suis Charlie”.

#TamoJuntos, pequena notável!

Murphy Gengivas Sangrentas e John Coltrane estariam orgulhosos…

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Daniel Pinto é jornalista