Nossa contemporaneidade tem apresentado inúmeras incongruências. Enquanto em outros tempos, um indivíduo, para ser reconhecido pelos seus pares, deveria produzir uma obra contundente e perene, nos dias hodiernos muitas “celebridades” tornam-se nacionalmente famosas, não por algum talento específico, mas por motivos banais, como ter um relacionamento (ou um filho) com alguém conhecido do grande público, pelos dotes físicos ou simplesmente “ser famoso por ser famoso”. Vivemos a “era do aposto”. Segundo o NILC (Núcleo Interinstitucional de Linguística Computacional) da Universidade de São Paulo, aposto é o termo da oração que se associa a outro termo para especificá-lo ou explicá-lo. Desse modo, a celebridade produzida pela “era do aposto” geralmente está associada a alguém ou a um programa popularesco (principalmente reality show). Em outros termos, trata-se de uma pessoa que jamais seria famosa por si só, ou que “não possui luz própria”.
Vejamos alguns exemplos emblemáticos. Nos anos 1990, duas conhecidas apresentadoras de televisão tiveram bastante destaque na mídia após manterem relacionamentos com celebridades mundiais. Desse modo, os apostos “ex-namorada de Aytron Senna” e “a mãe do filho de Mick Jagger” foram importantes passaportes para a fama e, não obstante, inauguraram a “era do aposto” no Brasil. Ainda nessa época, como representante masculino, surgiu o “pai da filha da Xuxa”, coadjuvante na “produção independente” da chamada “rainha dos baixinhos” (diga-se de passagem, a própria Maria das Graças Meneguel foi alçada ao sucesso com o aposto “namorada do Pelé”).
Seguindo os padrões machistas de nossa sociedade, para a mulher que possui atributos físicos apreciáveis, apresentar-se seminua em programas de auditório, ou manter um relacionamento com algum jogador de futebol que esteja em evidência, são apostos que podem conceder as credenciais necessárias para estampar capas de revistas masculinas ou atuar como atriz em alguma telenovela ou seriado.
Um bom apadrinhamento
Outro importante aposto é ser ex-integrante de algum reality show, efêmero status que confere ao seu portador o direito de cobrar vultosos cachês para aparecer “espontaneamente” em eventos. Entretanto, essa celebridade instântanea deve aproveitar ao máximo seus quinze minutos de fama, pois se trata de um aposto com prazo de validade muito curto. Por outro lado, ter um progenitor ou progenitora que seja famoso faz com que o individuo se torne automaticamente celebridade. Como exemplo desse poderoso aposto familiar podemos citar os filhos de cantores e atores que seguem as mesmas carreiras de seus pais. Não é preciso necessariamente saber cantar ou atuar; basta ter um sobrenome famoso que o sucesso é garantido.
Em suma, esse é o mórbido retrato de uma época em que mais vale um bom apadrinhamento do que ter alguma habilidade genuína. Na estrutura semântica das personalidades fabricadas, o “aposto” é mais importante do que o “sujeito”. Enquanto as onigofrênicas celebridades da “era do aposto” têm espaço privilegiado nos principais veículos de comunicação, milhares de anônimos verdadeiramente talentosos ainda buscam reconhecimento para suas respectivas artes. Lastimável contrassenso.
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Francisco Fernandes Ladeira é especialista em Ciências Humanas: Brasil, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor de Geografia em Barbacena, MG