Duas empresas anunciaram na revista Veja a realização de uma façanha: transportaram, da Espanha para o Brasil por uma distância de oito mil quilômetros no Oceano Atlântico, 11 caixões de concreto armado que instalaram no quebra-mar do porto de Açu, em construção no Rio de Janeiro, “um dos maiores portos do mundo”. Cada caixão tem 1.682 metros quadrados, com altura equivalente a um prédio de 10 andares.
Lembrei-me de uma façanha ainda maior, a que o milionário Daniel Ludwig realizou em 1978. Trouxe do Japão, por uma distância quase três vezes maior, pelo mar, uma fábrica de celulose e uma usina termelétrica, construídas no Japão sobre plataformas flutuantes. A fábrica tinha capacidade para produzir 220 mil toneladas de pasta de celulose e a usina podia gerar 55 megawatts de energia elétrica, além do vapor necessário ao processo industrial.
As duas enormes estruturas, pesando 30 mil toneladas, podiam muito bem ser fabricadas no Brasil mesmo. Mas precisariam de mais tempo do que Ludwig estava disposto a lhes conceder. Ele tinha muita pressa. Tornara-se dono de uma área de 1,6 milhão de hectares na foz do rio Amazonas, entre o Pará e o Amapá, que fora do famoso coronel (de barranco) José Júlio de Andrade, que a constituíra com o seu poder econômico e político. Dela pretendia extrair celulose e arroz, convencido de que nos anos 1980 o mundo teria fome de fibras e grãos, sem encontrar produção suficiente.
Em 1967, ao adquirir a antiga propriedade, já sob o controle de um grupo comercial local, Ludwig tinha 70 anos de idade. Não veria a maturação dos plantios florestais nem da estrutura industrial se não se apressasse. Conseguiu a aprovação do governo brasileiro, na época do regime militar (de resto, sempre seu parceiro), e foi buscar a resposta à sua urgência nos estaleiros da Ishkawajima, em Kure, no Japão.
Ludwig foi dono dessa instalação quando o general MacArthur, interventor militar dos Estados Unidos no pós-guerra, lhe concedeu os estaleiros. Com a devolução do poder ao derrotado Japão, Ludwig restituiu o controle acionário à IHI, mas manteve parte das ações. Ao encomendar as duas plataformas flutuantes para que navegassem pelo alto-mar com as duas estruturas industriais nos costados, impulsionadas por quatro poderosos rebocadores cada uma delas, era cliente e ao mesmo tempo beneficiário.
Durante 80 dias, as duas inusitadas embarcações atravessaram o mar da China, os oceanos Pacífico, Índico e Atlântico, subiram o rio Amazonas até a sua confluência com o Jari, e, por fim, penetraram no Jari até a localidade de Munguba, onde foram assentadas sobre 3.600 estacas de maçaranduba, a madeira resistente da Amazônia, que formou sua base dentro de um lago artificial, que, em seguida, foi drenado e aterrado.
Plano declinante
Em 1979, em tempo recorde, a fábrica e a usina entraram em funcionamento, mas os planos grandiosos de Ludwig começaram a degringolar. Erros primários de projeto foram cometidos, também por causa da pressa, os juros subiram, a crise do petróleo encareceu o custo da energia e ele acabou ameaçado de perder sua fortuna.
Preferiu passar em frente os empreendimentos do seu império na jungle amazônica. Em 1982, o Jari foi nacionalizado a toque de caixa, sob o comando do ministro Delfim Neto. Era a saída para a alternativa ruim: a estatização do projeto. Afinal, o empréstimo internacional, de 260 milhões de dólares (valor da época), para a implantação da fábrica e da usina, foi avalizado pelo tesouro nacional. Como Ludwig se recusou a pagar as prestações, sob a alegação de que não estava conseguindo ser atendido, o governo teria que pagar a prestação vencida e executar o seu parceiro modelar.
A solução de então, como a de hoje, em tempos de Petrobrás corrompida, é a mesma: o Banco do Brasil e o BNDES pagaram e as empreiteiras, dependentes do governo, no qual também tinham sua principal fonte de receita, se tornaram as donas da empresa. Socialização do prejuízo e privatização do eventual lucro. Mesmo que sem ele, sem o vexame da estatização por um governo pró-capitalista.
Acompanhei de perto toda a trajetória de Ludwig no Jari. Quando as duas fábricas entraram no rio, rumo ao distrito industrial de Munguba, as acompanhei de teco-teco. No momento em que as plataformas chegaram ao dique, pedi para o piloto circular em torno do local. O avião estava sem os bancos e sem as portas, e eu era o único passageiro. Comecei então a fotografar. Fiquei entusiasmado pela cena.
Esqueci que não estava preso a nada. Perdi a noção do espaço por estar fotografando com uma lente zoom. Só senti o impacto da mão do piloto me puxando pela gola da camisa e me atirando para o fundo do avião. Ele pressentiu que, naquela posição, diante do espaço aberto, eu podia cair e agiu rápido. Só então me dei conta da temeridade da minha situação.
Nessa época meu ingresso no projeto estava proibido por ordem de Ludwig. Tentei entrar aproveitando uma viagem do então ministro de minas e energia, Shigeaki Ueki. Acertei com ele, em Brasília, acompanhá-lo. Sua secretária me avisou na véspera para eu estar no aeroporto militar, onde ele trocaria o jatinho da FAB pelo DC-3 da Jari. Quando desceu do avião o abordei. Meio constrangido, disse que o milionário vetara a minha participação na excursão.
Lembrei Ueki da sua condição de ministro do governo brasileiro em território nacional. Desconversando, ele respondeu que era apenas convidado. O anfitrião era Ludwig. Eu devia conversar com ele, mas a resposta foi a mesma: eu não podia embarcar no velho aparelho da Segunda Guerra Mundial, que era o mais constante meio de transporte ao Jari.
Acabei ficando. Mas logo depois denunciei o abuso ao ser convocado para depor na CPI das terras da Câmara Federal, em Brasília, a convite do deputado Jorge Arbage. Apesar de apoiar o capital estrangeiro e o próprio Ludwig, O Estado de S. Paulo publicou com destaque a matéria que escrevi.
Não sei se ela influiu para a minha liberação no reino de Mr., Luwig, mas já estava em curso no projeto uma mobilização de técnicos para que eu pudesse voltar. Um dos líderes do movimento era o americano David Carmichael. Ele aparece aqui num tanque da Segunda Guerra, transformado em trator para arrastar madeiras por solos íngremes, numa foto que fiz no meu retorno.
Para assinalar a data, houve um jantar na Jariloca, o clube do staff do projeto, não acessível aos peões, que tinham seu próprio círculo (com uma categoria intermediária entre os dois níveis). Quem sentou ao meu lado foi Elmer Hahn, a pessoa mais próxima de Ludwig, seu homem de confiança.
Nossa conversa foi interrompida para a exibição de um documentário recente feito pela BBC de Londres, ainda inédito no Brasil. Quando as cenas começaram, pressenti o problema. Logo apareci numa entrevista desancando o Jari. Quando as luzes foram acesas de novo, todos os olhares se dirigiam para mim, surpresos, incrédulos ou indignados. Hahn, porém, nada disse, fleumático ou contido.
Passei vários dias circulando por todas as áreas do projeto, mas sempre havia uma pessoa da empresa por perto para saber o que eu fazia. Era discreta. A partir daí, não houve mais veto. O audacioso empreendimento de Daniel Keith Ludwig já estava no plano declinante. Em 1982 ele se retirou definitivamente do Brasil. Morreu uma década depois, aos 95 anos. Suas ligações o Jari estavam todas desfeitas.
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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)