Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O jornalismo científico à luz da análise do discurso

O jornalismo científico é, antes de mais nada, jornalismo. Esta premissa pode até soar como um jargão velho e ultrapassado, mas é necessário estabelecer este parêntesis ao tratar qualquer especialidade da cobertura jornalística. E não seria diferente com a cobertura de ciência, tecnologia e informação (C, T & I), para usar um conceito mais amplo. Se na cobertura de economia e até na “rasa” análise esportiva é possível encontrar traços de uma mesma atividade, marcada pelo acúmulo de funções, prazos cada vez mais exíguos e salários irrisórios, por que o mesmo não seria verdadeiro na cobertura de C, T & I?

Para todos os efeitos, qualquer especialidade do jornalismo é, antes de mais nada, jornalismo. Todas têm seu próprio campo léxico, seus jargões, e todas, com raríssimas exceções, sofrem dos mesmos problemas que açoitam o jornalismo contemporâneo, seja nas redações de jornais ou nos espaços integrados de produção multimídia.

É claro que o jornalismo científico, considerado por alguns colegas de profissão como “erudito” e praticamente inacessível, restrito apenas a um pequeno número de jornalistas sabichões, tem suas características próprias, como a interlocução entre públicos distintos, mais especificamente entre a academia e o leitor tido como “comum”. Mesmo assim, esta especialidade também está sujeita aos mesmos parâmetros que regem a profissão: a apuração cuidadosa, a pesquisa minuciosa, a contestação e a redação clara, que elucida e deixa pouca ou nenhuma margem para a dúvida.

Análise do discurso

Nas cadeiras da universidade, aspirantes a jornalistas e jornalistas já atuantes, que buscam complementar a prática jornalística com um pouco de conhecimento teórico, aprendem que a atividade preza pela objetividade e imparcialidade. Objetividade seria o relato preciso, isento de opiniões pessoais, descritivo e totalmente fiel à “realidade” presenciada pelo repórter. Como apregoam conhecidos nomes do jornalismo, como Erbolato, Lage e Traquina, a objetividade elimina “os adjetivos testemunhais e as aferições subjetivas”. Nas palavras de Lage, a “norma é substituir tais expressões por dados que permitam ao leitor ou ao ouvinte fazer sua própria avaliação”.

Embora esta seja a aparente realidade – ou um pedaço dela – do jornalismo diário, aquele de cunho noticioso, que obedece à estrutura narrativa do lide, há quem argumente que por trás de cada linha há um aspecto político e ideológico.

Eni Orlandi, precursora da análise do discurso (AD) no Brasil, defende que o jornalismo científico é “uma forma de manifestação da ciência” e que “ciência é lugar de políticas que excluem, incluem, que promove, que relegam ao esquecimento, que legitimam etc.”. Em outras palavras, para ela, todo dizer é um “gesto político”, “porque toda significação tem uma direção, divide”. E isso inclui, necessariamente, o tradicional jornalismo noticioso, seja ele especializado na cobertura de ciência ou não; sim, aquele mesmo, o do lide, com suas frases repetidas e semiprontas.

No livro Cidade dos Sentidos, Orlandi discorre sobre a ideologia presente em cada discurso, como o científico. Para ela, “a ciência não é um discurso em si mesma, mas no máximo, um discurso da ciência”.

Esta ideia contradiz a crença, ainda arraigada em algumas redações, de que o dizer científico não pode ser contestado, de que “se é científico ou baseado na ciência é verdadeiro”. Um exemplo recente é o exoesqueleto desenvolvido pelo pesquisador Miguel Nicolelis. No Brasil, poucos foram os veículos de comunicação que ousaram contestá-lo. Herton Escobar, do Estadão, foi um deles. No texto “Nicolelis e o show da Copa”, o jornalista examina o experimento do cientista brasileiro e lança dúvidas sobre o destino do projeto após a Copa (ver “Nicolelis e o show da Copa“).

A atividade e a especialidade

Outra publicação, esta norte-americana, a revista Wired, também lança um olhar desconfiado sobre o experimento e questiona se “o exoesqueleto controlado pela mente é ciência ou espetáculo” (ver “Is This Mind-Controlled Exoeskeleton Science or Spetacle?“).

Os textos mencionados ajudam a entender melhor a argumentação de Orlandi, de que o jornalismo científico e a ciência têm, de fato, motivações políticas e ideológicas. Outro elemento que reforça a ideia de que todo texto é um discurso é o entendimento de que “somos sujeitos vivendo espaços históricos sociais. Somos seres simbólicos e históricos, nos significamos ideologicamente”, como aponta Orlandi.

Muitas das ideias de Orlandi fazem sentido, especialmente no contexto de uma leitura/análise crítica da mídia, como propõe, por exemplo, o Observatório da Imprensa.

No entanto, há questões que podem ser aprofundadas no campo do jornalismo como atividade e no campo do jornalismo científico como especialidade, as quais serão tratadas mais a frente.

O jornalista como tradutor do discurso científico

Embora não mencione o jornalismo científico, Jacqueline Authier-Revuz, outro conhecido nome no campo da Linguística e mais notadamente no da AD, lança um olhar crítico sobre a Divulgação Científica (DC). Vale lembrar que DC e jornalismo científico são atividades distintas, mas que compartilham de objetivos comuns, cada qual com seu próprio método e ferramental. Um destes objetivos, por exemplo, é a difusão da Ciência.

Num capítulo do livro Palavras incertas: as não-coincidências do dizer, a autora discorre sobre o uso do conceito de tradução, como pretendido por alguns divulgadores de ciência, que argumentam que a DC tem por objetivo “traduzir” o relato científico ao público em geral. Também é dito, nas redações e nos círculos acadêmicos, que o jornalismo especializado na cobertura de C, T & I também partilha de tal missão.

Para a pesquisadora, a “língua” ou o “idioma” dos cientistas torna-se uma “língua estrangeira” para o público em geral. Segundo explica, no discurso de divulgação (DDC) há uma prática de reformulação de um discurso-fonte (D1) por um discurso segundo (D2), muito em função de um leitor, um “receptor” diferente daquele a quem se endereçava o discurso científico. “Se o discurso de DC coloca em uma relação de simetria os dois discursos através dos quais ele se constitui, este não os põe, no entanto, em pé de igualdade”, diz. Mais adiante, esclarece: “O funcionamento conjunto dos dois discursos, longe de apagar a diferença entre suas imagens, reforça-a: um, distante, é racional e erudito, ‘sabe precisamente o que ele diz’ sobre o mundo, e como ele o diz; outro, próximo, partilhado por ‘todo o mundo’, possui a incerteza do ‘de certo modo’ na escolha das palavras e o espanto das coisas.”

Neste sentido, considerando ainda o olhar de Orlandi sobre os textos, que são entendidos por ela como “discursos ideológicos e políticos”, o jornalista científico pode ser visto como um “tradutor”, já que elabora o seu próprio discurso ao redigir uma matéria jornalística com base em uma fonte ligada à ciência. Mesmo que, para tanto, siga a rigorosa e metódica estrutura do lide.

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Leonardo Siqueira é jornalista, especialista em Comunicação Empresarial e Jornalismo Científico