A capa do cartunista Luz com Maomé se declarando “Charlie” é ótima, mas prefiro uma que vi no Facebook (nenhuma ideia se chegou a ser mesmo cogitada), toda preta e com a manchete: “Urgente, precisamos de seis cartunistas”. Seria mais fiel ao teor da edição seguinte ao atentado à sede do jornal Charlie Hebdo, que matou 12 pessoas – nenhum sinal de luto respeitoso em todas suas dezesseis páginas, só pedrada no fanatismo de seus algozes.
Também apanham bastante os aliados de ocasião, gente que representa tudo o que os mortos abominavam e que disputaram à tapa uma alça do caixão na manifestação de 11 de janeiro – entre eles um representante do governo da Arábia Saudita, que mantém preso e submetido a sessões de chibatadas semanais o escritor e ativista Raif Badawi. Aparentemente, não é preciso apresentar nenhum atestado de coerência para requerer sua credencial de “Charlie”.
Na edição fatídica, o jornal não precisou se defender de acusações de ligação com a extrema direita – ninguém se atreveria a fazer uma besteira dessas na França, íntima de sua linha editorial anárquica. Espero que os ecos da desinformação da esquerda relativista brasileira não tenham chegado ao conhecimento das famílias dos mortos, que não precisam de mais motivos para se decepcionar com a humanidade.
Mas o hebdomadário tem muito a dizer sobre os defensores dos limites do humor, aqueles que prestaram solidariedade com ressalvas – os que acreditam que Wolinski e seus colegas, Deus os tenha, foram longe demais em suas provocações. Também sobrou para a transformação do jornal em um baluarte da liberdade de expressão – um cartum mostra uma sweatshop em Bangladesh com crianças fabricando camisetas com os dizeres “Je suis Charlie”.
Não há uma vírgula de arrependimento pela publicação do material que serviu de pretexto para a invasão: Charb, o editor assassinado, havia dito na ocasião das ameaças de atentado que “preferia morrer a viver de joelhos”. Para ele, não fazia sentido manter circulando um jornal de humor que não incomodasse ninguém.
Em outra oportunidade, os editores resolveram publicar uma “edição responsável”: não tinha textos nem desenhos, só algumas manchetes inócuas. “Esse”, disse Luz depois do atentado, “é o jornal daqueles que dizem ‘Eu sou Charlie, mas…’”
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Arnaldo Branco é cartunista