Na disputa shakespeariana sobre ser ou não ser Charlie, a tragédia em Paris serviu como reforço argumentativo para versões curiosas da liberdade de expressão, convenientes a cada grupo ou setor produtivo. Depois de tudo que se escreveu, resta a sensação de que esse conceito ficou ainda mais fragilizado e inatingível.
Sempre haverá espaço para discutir se o conteúdo veiculado pela publicação francesa abarca preconceitos religiosos. Mas nenhum cartunista do mundo tem obrigação de agradar sensibilidades. A manifestação criativa, principalmente nos campos da ficção, do opinionismo e do humor, não pertence à esfera polêmica. É soberana, imprescindível para a própria existência de um debate acerca dos seus produtos.
A ideia de que os cartunistas se excediam, além de admitir um inaceitável subtexto punitivo, implica o falacioso pressuposto de que eles estariam sujeitos a certas barreiras de ordem moral. Esse equívoco ajuda a contrabandear temas alheios à questão das liberdades individuais, submetendo-a ao mesmo relativismo autoritário que embasa, por exemplo, o cerceamento do dissenso político.
O uso impositivo da correção ideológica gera vias disfarçadas de arbítrio. Apesar dos jargões igualitários, as patrulhas do bom gosto, da decência e do “respeito” exercem uma forma de censura equivalente a qualquer outra. Deixam de valorizar as diferenças no momento em que estas se tornam incômodas: a democracia é positiva, desde que suas consequências não me desagradem.
Intolerante e repressiva
Mas a responsabilização dos assassinados pelo menos ajuda a marcar posições claras. Muito pior é a apropriação oportunista e cínica do mote libertário. Alguns dos maiores inimigos da liberdade de expressão, especialmente governos e corporações midiáticas, usam o massacre para dissimular suas práticas coercitivas nas disputas que travam ao redor do tema.
Entre os aliados póstumos das vítimas há pessoas que defenderam a prisão do humorista francês Dieudonné. O veto a biografias não autorizadas. Os processos contra blogueiros que ridicularizaram o diretor de Jornalismo da Rede Globo. A perseguição a quem ousa satirizar a sacrossanta Folha de S.Paulo. A campanha contra o marco regulatório das telecomunicações. A difamação impune de adversários eleitorais.
O extremismo islâmico serve como antípoda legitimador dos interesses conservadores, tão hábeis em repetir discursos democráticos quanto em sufocá-los. Isso explica a rápida apropriação simbólica do massacre pelo mote institucional da “liberdade de imprensa”. O sentido prático dessa liberdade fica para os tribunais determinarem.
Charlie Hebdo virou ao mesmo tempo bode expiatório e mártir de uma cultura intolerante e repressiva que no fundo execra tudo que os cartunistas representam.
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Guilherme Scalzilli é historiador e escritor