Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Por que o vestido se tornou viral

Na sexta [27/2] à noite, o vestido passou pela prova dos bares. Há algo profundamente estranho e maravilhoso no fato de que uma garota de 21 anos tire uma foto pavorosa de um vestido horrível num casamento realizado numa ilha escocesa e que em poucas horas milhões de pessoas em todo mundo acabem discutindo com os amigos numa sexta-feira à noite se é azul ou branco, se as telas dos computadores ou nossos olhos estão mal calibrados e quais são as razões científicas que explicam isso. Como outros observadores dos fenômenos da internet, também acredito que foi um viral perfeito, um dos maiores e mais velozes vistos até hoje, um símbolo dos tempos absurdos e fascinantes que vivemos e um ponto de não retorno no ecossistema informativo. Um ponto de inflexão. A singularidade viral. O Snow Fall do jornalismo viral. Para mim, foram essas as peças que, ao caírem, formaram um acidente extraordinariamente improvável:

Apela ao mínimo denominador comum

Não são segredo as duas formas pelas quais um conteúdo chega às pessoas: a primeira, interessar um público mais amplo possível; a segunda, dirigir-se a um nicho específico. Tocar uma pequena parte do imenso grupo de hispanófonos é tão interessante como alcançar quase todo o pequeno grupo dos ruivos. O importante é que, se você for um deles, encontre esse texto, vídeo ou foto por si mesmo ou porque alguém pensou em você e lhe enviou isso. O grande prêmio está na primeira possibilidade, quando se consegue chegar a uma enorme parte de um público que, além disso, é amplíssimo. O vestido é um mínimo denominador comum no sentido de que se trata de uma ilusão perceptiva que pode interessar qualquer dotado de olhos. Não há fronteiras que o detenham. Para entender isso, dá no mesmo ser inteligente ou tolo, idoso ou jovem, homem ou mulher, falar inglês ou não. Em todos os lugares do mundo nos quais a foto do vestido foi publicada foi um sucesso.

Utiliza uma emoção muito poderosa: o espanto

Sabe-se que para que a viralidade aconteça deve haver a mediação de uma emoção humana. O nojo, a alegria, a ira, o medo, a surpresa e a tristeza estão inscritas nos genes e mostrar isso nos ajuda a sobreviver. As lendas urbanas, por exemplo, são geralmente compartilhadas por medo. Para que se propague ainda mais, essa emoção, além de acontecer, deve ser ativadora, quer dizer, deve empurrar o nosso sistema nervoso autônomo à ação (por isso a indignação move mais massas do que a simples tristeza). A surpresa faz com que nos coloquemos de pé, chamemos os colegas de trabalho e lhes mostremos o telefone celular imediatamente para compartilhar esse vulgar vestido incrível que ninguém vê da mesma forma. Não é apenas “que interessante o que acontece com esse vestido”, é “isto é alucinante”. O espanto é minha emoção favorita, a mais jornalística de todas porque está por trás da ciência, da curiosidade humana, de tantos avanços. O vestido pode parecer uma tolice, mas a emoção pela qual o compartilhamos não pode ser mais elevada. E vamos nos sentir melhor compartilhando algo elevado ao invés da foto de uma celebridade sem maquiagem.

Contém uma revelação

Existe um estatuto superior no espantoso reservado àquilo que muda sua percepção do mundo. São as histórias que os anglo-saxões chamam life changing, depois das quais sua visão da vida e inclusive sua conduta mudam, como o grande sucesso de The Atlantic junto aos introvertidos, que explicou a muitíssima gente que o que eram considerados problemas pessoais eram tão somente traços de caráter. Em uma experiência já clássica sobre as notícias mais enviadas por correio eletrônico no The New York Times descobriu-se que este tipo de assunto, nos quais a ciência tem muito a dizer, são excepcionalmente compartilhados. Queremos entender o mundo e compartilhar nossas epifanias de uma forma altruísta. O vestido nos relembra uma grande verdade: cada um de nós percebe o mundo de uma maneira diferente.

É um excelente assunto de conversa

Já não somos macacos que removem os piolhos de outros macacos em sinal de paz e que deveríamos nos unir contra os depredadores. Mudamos esses rituais para o bate-papo: Robin Dunbar calculou que as intrigas e as histórias pessoais ocupam 65% das conversas das pessoas de qualquer gênero e idade em lugares públicos. Mas o nosso bem-estar continua dependendo das relações com os outros. “A principal razão pela qual as pessoas desejam conteúdo é para ter uma desculpa -ou uma maneira- de interagir com os outros”, dizia Douglas Rushkoff há dez anos. O viral nos dá uma razão para conversar com o outro e engordar as relações sociais. De fato, o viral, ao contrário de outro tipo de conteúdo, ativa no cérebro a área encarregada de pensar nos outros. Adoramos influir no outro por meio das histórias, somos DJs da informação, diz Matthew Lieberman. O vestido é um perfeito tema de conversa leve, com toda a importância que isso tem.

É uma pequena bomba química

As interações sociais que realizamos diariamente na internet (usar o Twitter, receber um a curtida no Facebook, participar de chats)elevam nossos níveis da molécula da relação com os outros, a oxitocina. Nesse sentido, não diferenciamos a conexão eletrônica com os outros da conexão feita pessoalmente. Nosso cérebro nos recompensa por mostrar o vestido à família e rirmos dele durante um instante pelo WhatsApp com os amigos.

É imediato

Você o vê ou não o vê, mas acontece num segundo. É uma questão de percepção e não de raciocínio. O vestido engana a parte do cérebro encarregada do pensamento lento e ponderado. Se a isso somarmos ter um celular no bolso, em quatro segundos você pode “infectar” dezenas, centenas, milhares ou milhões de pessoas pelo Twitter, Facebook, Whatsapp, e-mail ou mostrando a tela a elas. E quando você pensar se tem sentido compartilhar algo assim, você já enviou. Os virais atacam a parte mais emocional do cérebro. Deixam de funcionar todos os freios que o cérebro humano estabeleceu em sua luta por manter o equilíbrio entre emoção e razão.

A foto em si é uma joia

Qualquer tipo de formato pode se tornar viral e provavelmente o vídeo seja o mais poderoso, mas cuidado: continua sendo uma foto poderosa. Melhor ainda, é uma ilusão de óptica, um desses “grandes temas” que sempre fascinaram os homens. Passamos toda a história construindo caleidoscópios, estereogramas, trompe l’oeils, amando Escher e inventando os Oculus Rift [óculos de realidade virtual].Como ilusão de óptica, a foto é uma anomalia tão excepcional que teria sido difícil de pré-fabricar, dizem os especialistas.

Há verdade na foto

Não é imprescindível que algo seja verdadeiro para que se torne popular, mas há algo tão inocente no vestido, no post original do Tumblr, que se nota. A foto não foi enquadrada, nem pensada, nem manipulada. É tão feia e espontânea que grita “sou real”, e isso, em um mundo em que os memes pré-fabricados são tão comuns, brilha.

Os grandes concentradores de atenção aceleraram o contágio

Famosos e meios de comunicação são tumores na rede humana, ricos na atenção alheia, o mais escasso dos bens da internet. O caso do vestido foi contado pelo meio de comunicação que melhor o entende e que mais atenção concentra, o Buzzfeed. O resto da imprensa global o seguiu. Os famosos, de Taylor Swift a Kim Kardashian, com seus milhões de seguidores nas redes sociais, aceleraram ainda mais a propagação. Do ponto de vistas das redes era decisivo estarmos localizados em um ponto muito isolado para que não nos chegasse rapidamente o vestido. Não é comum que uma história que interesse ao mesmo tempo os meios de comunicação e os famosos consiga impacto global.

O momento em que ocorreu

É uma obviedade, mas em nenhum outro momento da história teria sido possível o que aconteceu com o vestido. É necessário que existam a internet, os celulares com câmera, as redes sociais e, principalmente, o sistema midiático adequado. Para que uma redatora se sinta livre para escrever “De que cor é esse vestido?” (a peça original, que dois dias depois conseguiu 35 milhões de visitas) era necessário criar antes um meio com o ambiente criativo, a estrutura editorial e a maquinaria científica orientada para hackear a atenção humana e conseguir viralidade, como o Buzzfeed. Também era necessário que dezenas de outros meios em todo mundo, desesperados pela ditadura do clique que a publicidade usa na internet, precisassem replicá-lo. E que outros, que estão começando a se libertar dos preconceitos, o explicassem e o levassem a sério. Era imprescindível também uma audiência global, saturada e farta que desenvolveu tantos anticorpos para a informação, cuja atenção só desperta com uma autêntica paulada. É por isso que os virais são cada vez mais explosivos e chegam a mais gente. Estamos na guerra pela atenção, na Memecracia.

A autorreplica e o “nós contra eles”

Existem casos mais claros nos quais o vírus inclui as instruções para a replicação (“se você gostar, compartilhe”, “passe-o”), mas as do vestido são mais sutis e interessantes. Se não se compartilhar com outra pessoa, o meme do vestido não tem sentido porque qual é a graça vê-lo azul se não sabermos que o resto o vê branco? Para completar o sentido do meme se necessita do outro. Isso nos leva imediatamente a um dos mobilizadores humanos mais poderosos, o “nós contra eles”, minha tribo contra a alheia. Basta que atribuam uma equipe aos humanos para que a defendamos até níveis irracionais. Uma vez mais, está escrito nos nossos genes.

Essa análise, é claro, só pode ser feita a posteriori. Ninguém pode predizer o que vai ser viral, apenas reduzir a incerteza por meio do conhecimento e da prática profissional. Esse é o trabalho do Buzzfeed e também, de uma forma muito mais humilde, do Verne.

O vestido pode ser muitas coisas, exceto uma tolice. Que tantos milhões de pessoas estejam falando ao mesmo tempo de algo assim diz tanto do nosso mundo que não entendo como não possa interessar alguém. O vestido me fez pensar no parêntese Gutenberg, a teoria que considera que a imprensa foi uma exceção histórica e que, graças à internet, estamos voltando para a cultura oral. Ou, pelo menos, a falar como nos bares.

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Delia Rodríguez, do El País