Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

As verdades do Photoshop

No início da pop art, os primeiros artistas e críticos britânicos que tentavam explicar o movimento no qual se viam envolvidos utilizavam um argumento que hoje nos é familiar: nós — diziam — somos nativos de uma nova cultura frente a de nossos antepassados, nos alimentamos visualmente de imagens que, pela primeira vez na história, não são nem pretendem ser imagens tiradas do natural, mas que foram produzidas industrialmente e com fins comerciais, as imagens da cultura do consumo de massa, do cinema, da televisão e da publicidade, que se transformaram, na década de 1960, na atmosfera iconográfica dominante nas sociedades do capitalismo avançado.

Como Gilles Deleuze escreveu uma vez, a imagem fotográfica assim produzida em grande escala não tinha a pretensão de competir com a pintura na representação da realidade, aspirava a algo mais: queria reinar sobre a visão, colonizá-la totalmente. E, sem dúvida alguma, conseguiu isso, embora esse império tenha se tornado um pouco ambíguo hoje, quando são completados 25 anos do Photoshop, o programa que colocou o retoque fotográfico ao alcance de todos.

A fotografia conquistou historicamente seu prestígio em documentar sob a força da humildade: enquanto a pintura exigia a mão magistral do sujeito e a interpretação do espírito artístico, ela se conformava em ser uma simples reprodução mecânica do visível e, portanto, se apresentava como uma garantia de objetividade que permitia captar o que passava despercebido aos olhos e, com isso, teve depois aplicações técnicas e científicas. Mas também teve aplicações propagandistas e comerciais, e graças a elas aprendemos que esse suposto prestígio deve ser matizado. Assim como nossos antepassados acreditaram em algum momento que a escrita era uma prova de fidelidade, até que compreenderam que tudo o que é escrito pode ser falsificado, e que, segundo a definição cunhada por Umberto Eco, a escrita pode ser utilizada para dizer a verdade com a mesma facilidade que para mentir, perdemos a ingenuidade de confundir simplesmente a fotografia com a realidade, e comprovamos a eficácia política e jornalística que podem ter não apenas as fotomontagens, mas inclusive a simples decisão de um enfoque ou da escolha de um plano na hora de interpretar uma determinada realidade, no sentido escolhido pelo observador.

Quando as imagens se tornaram digitais, subiu-se mais um degrau em sua artificialidade e, portanto, na possibilidade de serem manipuladas, especialmente quando não é necessário nem sequer imprimi-las para que surtam efeito, e a tela de cristal líquido lhes proporciona uma homogeneidade que tornam os retoques quase imperceptíveis. Já temos algumas gerações que são nativas da cultura digital, e que portanto cresceram numa atmosfera tão fotorrealista como a dos jovens de 1960, mas com esta diferença: a imagem fotográfica continua imperando sobre o olhar, não representa uma realidade natural, mas um mundo já previamente transformado em imagem, em fotografia. Agora as imagens já nascem manipuladas, não são entregues ao público sem terem sido submetidas a um tratamento prévio, que antes estava apenas ao alcance dos grandes laboratórios, dos chefes de Estado ou de estúdios cinematográficos, e que hoje estão à disposição de quase qualquer pessoa.

Tecnologia digital

As imagens já não são apenas suspeitas de uma possível manipulação. Nos dias de hoje, temos certeza de que foram manipuladas antes de serem distribuídas, uma vez que sua confecção faz parte do processo de construção de forma tão legítima como o click da câmera fotográfica, que já não é mais do que uma concessão mimética aos nostálgicos do analógico. Os maiores defensores das novas tecnologias sugerem que, com isso, desapareceu a necessidade de fotógrafos profissionais (porque agora todo mundo é fotógrafo “profissional”, ou seja, todo mundo pode não apenas fazer fotos, mas retocá-las ou montá-las a seu gosto), que a fotografia perdeu totalmente sua condição de documental e passou a engrossar a categoria, em nosso século tão avultada, do simulacro, ou seja, daquela imagem que não remete a nenhum original externo, que é originariamente cópia e manipulação em um sentido não pejorativo. Desta forma, além de sermos fotógrafos profissionais, todos seríamos fotógrafos artísticos, mexedores e produtores de imagens originais, porque o próprio conceito de original veio abaixo.

Mas nisso também temos que avaliar as ilusões que os avanços tecnológicos despertam em nós. A ingenuidade de pensar que toda fotografia é um documento fiel do original que retrata não é maior que a de pensar que todo fotografia é em si própria uma obra de arte original do fotógrafo, e a democracia estética não consiste exatamente em colocar ao alcance de todos os mortais a ferramenta do Photoshop. A tecnologia digital aumenta nossa capacidade de enganarmos a nós mesmos ao aumentar nossas possibilidade de manipular imagens. Se esta mesma ideia tem sentido, é porque existe algo a ser manipulado e, portanto, algo que não é manipulação em si mesmo. Ainda que sejamos nativos de um mundo previamente convertido em fotografia pelos meios de comunicação, se alguém tem interesse em manipular as notícias ou em retocar as imagens é porque esses meios ainda têm –por mais abaulado que estejam— um caráter persuasivo, e só podem tê-lo se pensamos que comunicam algo que não é simplesmente uma imagem pré-fabricada, que a imagem é imagem de algo, e não de nada. Ontem nos preocupava que as imagens pudessem nos enganar. O que hoje nos inquieta é que, apesar de tudo, também mantêm a capacidade de dizer, às vezes, a verdade.

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José Luis Pardo, filósofo espanhol, ganhou o Prêmio Nacional de Ensaio com La Regla del Juego ( A regra do jogo, 2004). É autor de Nunca Fue tan Hermosa la Basura (O lixo nunca foi tão bonito) e Esto no es Música: Introducción al Malestar en la Cultura de Masas (Isto não é música: introdução ao mal estar na cultura de massas).