Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Como ninguém

Renato Pompeu – o ótimo escritor de quem falei na semana passada, hoje injustamente esquecido – entrou na minha vida bem antes de nos conhecermos de corpo presente, naquele final de 1976 em que, num momento de insensatez, troquei as margens do Sena pelas do Tietê, e ali encarei o que seria a minha primeira encarnação na revista Veja.

Amigos que trabalharam com ele no Jornal da Tarde me haviam falado, com enorme admiração, da figura até fisicamente imensa, rotunda, de Renato Ribeiro Pompeu, de sua inteligência superior, de seus impecáveis textos jornalísticos, dos ditos espirituosos que ele expedia com voz tonitruante. Entre outras pérolas, era autor do que talvez seja a melhor ilustração do pesadelo político que então vivíamos, no qual presságios lançados na conta da paranoia costumavam virar realidade: “Cuidado, as orelhas têm ouvidos!”, alertava o Renatão – e sabia o que estava dizendo, pois sofrera cana e tortura, tão ásperas que seu psiquismo para sempre se entortou. Era autor, também, do recém-publicado romance Quatro-olhos, o primeiro dos 22 livros que escreveria até que, pouco mais de um ano atrás, um infarto o apagasse, aos 72.

Impossível esquecer nosso primeiro contato. Eu mal chegara ao novo ambiente de trabalho quando Renato Pompeu veio vindo, lento, paquidérmico, até a minha baia – nome sugestivamente hípico que se dava, como nas cavalariças, aos compartimentos da redação, delimitados por divisórias baixas –, e se plantou diante de mim numa pose que lhe era típica, os dorsos das mãos gordotas fincados bem alto nas laterais do corpo, à maneira de um açucareiro, enquanto, lábios franzidos em bico, me cravava seus assustadores olhos negros.

– Sou o Renato Pompeu – apresentou-se, e acrescentou: – Eu não como ninguém!

– Muito me tranquiliza… – respondi.

Tantos anos depois, ainda não conheci alguém “tipo Renato Pompeu”.

Sem interrupções

Diziam que era doido de carteirinha, e não tardei a testemunhar os solavancos sísmicos de sua mente conturbada. Mesmo nos momentos de crise, porém, seu comportamento me parecia comprovar o acerto de Chesterton ao dizer que o louco é o homem que perdeu tudo, menos a razão. Ao sentir que vinha aí a rebordosa – quando, por exemplo, dava de comparecer à redação de terno branco e chapéu panamá –, Renato Pompeu providenciava ele mesmo a sua internação. Embora tivesse provado do inferno do Juqueri, sabia que o louco pode, vitalmente, precisar de hospício. Num tempo em que Franco Basaglia e Richard Laing pregavam a demolição dos manicômios, ele, inclusive num pequeno e fascinante livro, Memórias da Loucura, defendia a instituição, desde que, naturalmente, a corrigissem e aperfeiçoassem.

Fora das crises, não tão numerosas assim, Renatão raiava à genialidade. No Jornal da Tarde – quem conta é Fernando Morais –, encarregado de pôr em português potável um texto de má lavra, soltou o vozeirão: “Quem escreveu esta merda?”. O autor, lá do seu canto, rebateu: “Foi a sua mãe!” Renatão não se alterou: “Ah, bom… Então avisa para a minha mãe que ‘quiser’ se escreve com S, não com Z.”

Diante de um mau título, esse jornalista puro sangue dizia que melhor fora o autor ter escrito, simplesmente: “Leia esta matéria”. Quando o presidente eleito agonizava, Renato leu na Folha de S.Paulo que os médicos haviam “esfriado” Tancredo Neves – e imaginou a continuação da história: “Risoleta estranha a frieza do marido”. Conta-se que, no início da carreira, escrevendo sobre o fenômeno de um ovo avantajado, botou como título: “E a galinha penou”. Pena que o editor não deixou sair.

Dono de cultura bem mobiliada, além de redator impecável (adjetivo que se aplicava também à datilografia), eu o vi atravessar ao longo de três dias uma pilha de livros para escrever sobre Antonio Gramsci, cujo centenário de nascimento se comemorava. Em seguida, passou bom tempo a ir e vir, qual monge, no corredor da Veja. Por fim estacou e, juro, seu corpanzil se pôs a trepidar como geladeira velha, ou um daqueles computadores formidandos de primeira geração, a processar quilos de leitura. Retornou então ao posto e, vagarosamente, mas sem interrupções, batucou na sua Olivetti Lexikon 88 mais uma esplêndida amostra daquela correção e brilho que em Renato Pompeu – o homem, o jornalista, o escritor – eram dons tão fartos quanto naturais.

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Humberto Werneck é colunista do Estado de S.Paulo