Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O Facebook e o motorista

O comediante norte americano Louis Székely, profissionalmente conhecido como Louis C. K., faz um quadro onde comenta o comportamento agressivo e truculento do motorista de automóvel, conjecturando como seria, por exemplo, a transposição deste comportamento para o cotidiano, isto é, para ações ordinárias, como no uso coletivo de um elevador. Um leve esbarrão do sujeito ao lado e a reação seria uma saraivada de impropérios e xingações. Em tudo igual ao motorista quando outro motorista se aproxima demais.

O resultado deste seu exercício demonstrando quão estúpidos e desequilibrados somos ao volante induziu-me a perceber que com o advento das mídias sociais algo deste comportamento de motorista dono da estrada se reflete em mídias como o Facebook. Quem pensa diferente do dono da linha do tempo no Facebook (é o que mais utilizo e conheço; não tenho Twitter) recebe a mesma dose de agressão que a endereçada ao motorista que ousa atravessar na sua frente ou mesmo levemente perturbar seu sacrossanto espaço que, geralmente, é toda a via. Sem falar dos que invadem a pista contrária, isto é, a linha do tempo de outros, para comentar de modo agressivo e brutal. Também é certo que muitos dos insultadores podem estar manifestando uma indignação assentada em valores éticos e justos. Indignação que, no entanto, fica prejudicada por partidarismo ideológico que os deixa cegos para ver além do pautado pela grande mídia que acoberta e minimiza os malfeitos dos políticos defensores dos interesses da Casa Grande. No outro lado do dia ideológico cometem o mesmo maniqueísmo ou cegueira aqueles que acham que tudo é “intriga da oposição”, que o PT não aderiu ao modus operandi da velha política existente desde sempre.

Sobre a questão do comentar na linha do tempo do Facebook de outros, vai aqui um depoimento pessoal: Costumo não me aguentar ao deparar com amigos e familiares que conheci como militantes políticos, até mais à esquerda que eu, e que hoje sucumbiram ao discurso da grande mídia e, por vezes, postam verdadeiros insultos a quem ainda resiste na contramão do pensamento único. Minha indignação, no entanto, não resulta em cometer insultos iguais como resposta, mas argumentar com o máximo de racionalidade possível. O pior é que o antipetismo destes que aderiram às bandeiras da direita, dos valores da Casa Grande, virou antiesquerdismo dos mais virulentos. Diante disso, sou visto como um agressor mesmo que não faça comentários eivados de palavrões e xingamentos. Somente contrariar o discurso estabelecido é tomado como insulto grave.

Semelhanças assustadoras

Como atenuante poder-se ia arguir que o aprendizado do uso do espaço público, que são as mídias sociais, inexistiu. Tudo ocorreu rapidamente. As pessoas nem tiveram o cuidado de ter aquele mínimo de decoro e reserva que se tinha quando, nos tempos de antanho, se escreviam cartas para alguém. Disso resultou um paradoxo: A ampliação da democracia via criação de novos canais para manifestação de opinião e, ao mesmo tempo, uma maior visibilidade do discurso antidemocrático, intolerante, avesso a mudanças e atrelado aos interesses dos muito ricos.

Outra faceta resultante do advento destas novas ferramentas tecnológicas de comunicação foi o impacto inegável no monopólio da escrita dos que escreviam bem ou tinham espaço na imprensa porque refletiam os interesses da Casa Grande, da elite dominante, enfim, do dono do jornal, rádio ou TV. O negativo é que este avanço redundou no nivelamento por baixo, com a adoção de um estilo por demais assentado no ódio, na baixaria, na intolerância e no escrever tentando mais agredir do que convencer ou como quem fala com o amigo ao lado com o agravante de que este não está ao lado e, às vezes, nem amigo é e, portanto, o grau de contundência e belicosidade no trato pode ser, e é, maior. Lembra em tudo o motorista que esbraveja desatinadamente até por pequenas rusgas tipo aquela em que outro carro se aproximou não demais, mas entendido como demais.

O risco que se corre é pensar que vivemos em um tempo de intolerância e barbárie como nunca antes e assim sucumbirmos a este avassalador processo hobbesiano quando, no meu modesto entender, o que mudou em relação ao passado é apenas a percepção da realidade em um contexto de crise global. Uma realidade que incluiu no panorama da comunicação midiática os que até ontem eram chamados de maioria silenciosa, que sempre constituíram a base do senso comum conservador, e que estão se esbaldando ao perceber que o seu jeito de ser grosseiro, mal informado e incapaz de uma avaliação de conceitos mais complexos, como classificou William Bonner acerca de seus telespectadores, tem receptividade e atenção e assim se estabelece um ciclo vicioso que nivela por baixo a cultura geral da sociedade. Acrescente a isso, a lógica de mercado, que procura não cultivar valores civilizatórios, mas aprofundar a hegemonia neoliberal calcada no individualismo, no anti-intelectualismo, enfim, no egoísmo onde as pessoas parecem valer apenas na medida em que são integradas a um pensamento único – termo criado por Ignacio Ramonet, diretor do jornal Le Monde Diplomatique. Um pensamento que, como bem diz Claudio Bernabucci, em seu artigo “A praga do pensamento único“, tem uma agravante no caso da mídia brasileira porque, diz ele:

“O ‘pensamento único’ da chamada grande imprensa é bem mais extenso aqui do que em outros países de democracia madura. A esse aspecto acrescenta-se um partidarismo acentuado, unilateralmente antigovernamental, que contrasta com uma concepção da informação como serviço pluralista à cidadania. O governo brasileiro não pode ser isento de críticas, mas o mérito de ser um dos poucos no mundo que na última década conseguiram crescimento econômico e diminuição das desigualdades, deveria ser reconhecido em homenagem aos fatos.”

Lutar pela defesa de valores civilizatórios, não se deixando contaminar pelo (des) espírito assentado no pior do humano, pode ser a contribuição de cada um com espírito progressista e democrático para que não se instaure um verdadeiro clima de guerra nas mídias sociais, ao invés de estarmos apenas assistindo a uma maior percepção do pensamento conservador, tradicional, que antes existia, mas se fazia silencioso pelas razões acima elencadas. Uma percepção que me levou a perceber ali semelhanças assustadoras com o comportamento hostil do motorista ensandecido que percebe os outros motoristas como inimigos potenciais e, ao menor sinal de perturbação, se estabelece, na maioria das vezes, quase automaticamente, um nível de enfrentamento improvável de ocorrer no trato direto sem uma janela de vidro a separar as pessoas, como bem percebeu Louis C.K ou, no caso da internet, dependente de um clique.

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Jorge Alberto Benitz é engenheiro e consultor