O programa Profissão Repórter apresentado na terça-feira (10/3), ainda antes dos protestos do fim de semana seguinte, é um dos mais perfeitos retratos da crise pela qual o Brasil passa. Num tempo em que o jornalismo padece do mal das opiniões apressadas em detrimento dos fatos apurados com rigor e isenção, o experiente Caco Barcellos mostra que uma reportagem bem feita e coesa pode realmente tornar-se parte dos livros de história de um país.
Para a população em geral, as maracutaias e os conchavos que resultaram em escândalos de corrupção como o Mensalão e o Petrolão não são muito claros. A maioria desconhece a relação entre termos como “propina”, “caixa dois de campanha”, “doleiro” e “delação premiada”. No Brasil, o povo só entende o que vive e infelizmente isso não basta para construir o futuro. Este é, portanto, um dos motivos que levou ao nosso fracasso enquanto nação: sem educação, sem preparo, o cidadão comum não tem autonomia para planejar sua vida e ficará sempre à mercê das (más) ações dos seus governantes, de políticos corruptos e de líderes mal-intencionados. Temos eleitores incapazes de juntar os vários elementos que compõem o sistema para ver o quadro maior de sua própria realidade e poder antecipar-se à crise, precaver-se contra ela.
Um exemplo disso é a discussão acompanhada pelo repórter Manoel Soares entre a gerente de uma loja de calçados e um trabalhador do polo naval da cidade de Rio Grande (RS), município cuja economia depende quase totalmente da construção de plataformas de petróleo. Enquanto o trabalhador argumentava que o comércio deveria fechar as portas em apoio aos trabalhadores – que, devido à crise na Petrobras, corriam o risco de sofrer demissões em massa –, a gerente da loja exigia ter resguardado seu direito de manter a loja aberta. Nesse momento, o trabalhador exibiu uma nota fiscal afirmando que havia comprado “três pares de tênis em um mês” naquele estabelecimento, e questiona: “Tu acha que agora [com a crise no polo naval] eu vou conseguir comprar três tênis em um mês?”
Estabilidade mal aproveitada
Nesse breve diálogo, há o vislumbre de uma das consequências mais nefastas da falta de investimento na educação: foram anos de estabilidade econômica e de pleno emprego para fomentar apenas a ânsia pelo consumo, em vez de criar condições para que as pessoas evoluíssem e tivessem um poder real de decisão sobre os rumos de suas próprias vidas. Aquele trabalhador de nota fiscal em punho mal sabe que tanto ele quanto a gerente da loja são vítimas de um sistema perverso que fez o cidadão comum acreditar que ter poder de compra significava ter poder de fato. Em vez de aprenderem a lidar com sua realidade e a investir sabiamente o dinheiro que sobrava no fim do mês, dar uma volta pelo shopping tornou-se o ápice da satisfação de um desejo de pertencimento a uma nova classe.
Quantas dívidas foram feitas em nome desse consumismo desenfreado disfarçado de protagonismo na sociedade? Por que aquele rapaz achava que era aceitável gastar seu dinheiro comprando três pares de tênis num único mês? Temos um povo inculto, uma geração inteira de jovens e adultos despreparados para enfrentar uma crise econômica porque em vez de buscarem a ascensão pela educação se contentaram com a ascensão pelo consumo. Pior que isso: em momentos de dificuldades financeiras, essas pessoas tornam-se presas ainda mais fáceis das ideologias ultraconservadoras propagandeadas por grupos religiosos que prometem garantir o milagre da prosperidade via dízimo. Nenhuma pessoa instruída apoiaria, por exemplo, a visão deturpada da sociedade que a bancada evangélica tenta impor a todo custo no Congresso Nacional.
Na verdade, também as classes mais abastadas perderam uma grande chance de contribuir com algo duradouro para o nosso país durante o longo período de estabilidade econômica dos governos Lula e Dilma. Mesmo com todos os recursos à disposição, sem que a educação de seus filhos dependesse de uma ação governamental, não se formou uma legião de líderes e de intelectuais alinhados com propostas revolucionárias de vida em sociedade (desenvolvimento sustentável, mobilidade urbana, energia limpa, respeito pelas diferenças, consumo responsável), o que poderia trazer um verdadeiro desenvolvimento para o país.
A ilusão do poder pelo consumo desenfreado fez com que a elite se contentasse em transformar seus jovens em reizinhos de camarote com champanhes piscantes e selfies para documentar a ostentação nas redes sociais. Infelizmente, tal tendência foi seguida também pelos jovens de periferia (acostumados a copiar no morro o que o asfalto valoriza): o funk ostentação saiu dos bailes para ser a trilha sonora dos rolês no shopping e da compra de “três pares de tênis em um único mês”.
Quantas pessoas só entendem que o país enfrenta problemas sérios somente porque seu poder de compra já não é mais o mesmo? Quantos endividados perderão casas e carros, bens materiais, até não lhes restar mais nada? Se tivesse existido verdadeiro interesse em dar real poder à nova classe C, teria havido um esforço em torná-la mais forte e ativa por meio do conhecimento, da autonomia de planejar e de executar – e não apenas consumir. Isso não aconteceu. Restam agora as cenas e os depoimentos comoventes de chefes de família sem salário há três meses, de trabalhadores na fila do seguro desemprego, de comércio parado e de empresas fechadas como prova do fim de um período de estabilidade econômica mal aproveitado.
Longe do ativismo insípido das redes sociais, da briga de criança birrenta entre “petralhas” e “coxinhas”, da polarização danosa entre petistas e tucanos, de pedidos incoerentes de impeachment e de intervenção militar, das tramas obscuras orquestradas por gente como Renan Calheiros, o programa Profissão Repórter mostrou onde a corda já arrebentou.
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Candice Soldatelli é tradutora e jornalista, São Marcos, RS