Não havia Facebook, Whats- App ou televisão no começo do século 19. Mas, como nos dias de hoje, a grande polarização política da sociedade daquela época também encontrou vias alternativas para o debate, que não passavam pela imprensa tradicional ou pela produção acadêmica.
Tratava-se dos panfletos, ora pregados em postes ou muros das cidades, ora publicados em pequenas brochuras. “Os que eram manuscritos seriam como o Facebook ou o WhatsApp de hoje. Já os impressos, mais trabalhados e editados em gráficas, não possuem um equivalente na atualidade”, dizem José Murilo de Carvalho, Lúcia Bastos e Marcello Basile.
Os três historiadores, que já haviam reunido e editado panfletos manuscritos do período independentista em “Às Armas, Cidadãos” (Companhia das Letras, 2012), agora lançam “Guerra Literária – Panfletos da Independência” [Editora UFMG, 3256 págs., R$ 120], conjunto de 362 panfletos impressos, divididos em quatro volumes, publicados entre 1820 e 1823.
Editados de forma ágil em brochuras de fácil reprodução, os panfletos chegavam ao público antes que os jornais ou livros impressos. Além disso, eram mais baratos, custavam em torno de 80 réis –à época, uma empada com recheio de ave era vendida nas ruas do Rio de Janeiro por 100, e uma garrafa de aguardente, por 80.
“Os panfletos não surgem gratuitamente no Brasil, tinham um objetivo político. Por meio deles se observa como os conceitos de independência e de república vão se incorporando ao debate e se desenvolvendo. Há registros de literatura panfletária no Brasil até a década de 40 [século 20]”, diz a professora Regina Wanderley, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, do Rio, em entrevista por telefone.
O conceito, explicam os pesquisadores, tem origem com o “pamphlet” surgido na Inglaterra em 1580, de cunho satírico e político, e populariza-se na França, em meados do século 17. Foram, depois, comuns durante o período de Independência dos EUA (1775-83) e a Revolução Francesa (1789-99).
“Muitos dos autores eram pessoas envolvidas na luta política. No caso brasileiro, o conteúdo dos panfletos altera-se claramente de acordo com o conteúdo das decisões vindas das Cortes. Eram sempre precedidas de amplo debate. Não temos dúvida de que os panfletos deram a nota democrática do processo da Independência”, dizem os historiadores, que responderam à entrevista por e-mail.
O período tratado nos quatro volumes é o que abarca desde a Revolução Liberal do Porto, em 1820, até o momento posterior ao da Independência brasileira, em 1822. O movimento português pregava o fim do absolutismo e a constitucionalização da monarquia.
Palpites
Como os escritos foram publicados em Portugal, no Brasil e no hoje Uruguai (então Província Cisplatina) é ampla a gama de opiniões de funcionários públicos e profissionais liberais sobre que rumo deveriam tomar os membros da família real e o Brasil. Se D. João 6º deveria ou não viajar a Lisboa para lidar com a crise, ou se seu filho, Pedro, deveria ser enviado em seu lugar.
Depois do dia do Fico (9 de janeiro de 1822), os panfletistas se dividiram sobre a forma de organização política que o Brasil deveria adotar, sendo a Independência uma entre várias alternativas.
Uma clara disputa vai se desenhando, entre os que pediam um governo mais liberal, em que a soberania residisse nos representantes da nação, e a de um governo mais centralizador, que tinha como modelo as monarquias conservadoras da Europa daquele momento.
Conceitos como absolutismo, anarquia, revolução, liberalismo e separatismo são discutidos com paixão. Os três estudiosos apontam, inclusive, para o uso de um tom mais emotivo e de uma linguagem mais espontânea como parte da explicação do sucesso de leitura dos panfletos.
“Os panfletos visavam e atingiam, além da elite letrada, o povo, pelo falar ‘de boca’. Muitas pessoas tomavam conhecimento das novidades políticas ouvindo leituras em voz alta e participando de conversas e discussões nas lojas e mesmo na praça pública.”
Apenas 32% de seus autores possuíam diploma, muitos eram anônimos e alguns usavam pseudônimos. Dos 95 autores identificados, apenas 3 eram mulheres.
Devido à espontaneidade da narrativa, não era incomum a aparição de “palavrões” ou insultos, como “besta”, “charlatão”, “desaforado” e outros. Os que defendiam a continuidade do jugo português eram chamados de “corcundas”.
Para os historiadores, a produção panfletária mostrava um posicionamento intelectual de parte da sociedade educada que não havia ido a Coimbra, onde estudavam os filhos da elite portuguesa e brasileira. Eram pessoas formadas nos seminários, nas escolas militares, autodidatas e jornalistas.
“Muitos dos autores também tinham passado por outros países, Inglaterra, Alemanha, França. O período pombalino havia paralisado o pensamento luso-brasileiro, e os jovens que iam a esses outros países trouxeram muito para o debate político”, diz Wanderley.
Para José Murilo de Carvalho, a publicação dos panfletos (divididos em “Cartas”, “Análises”, “Sermões, Diálogos, Manifestos” e “Poesia, Relatos, Cisplatina”) pode ainda ajudar a desconstruir alguns lugares-comuns da história nacional.
“A Independência não foi arranjo de família nem complô de elites. Houve uma guerra literária em torno das opções que iam surgindo, uma guerra que se acoplou à guerra das ruas, como no caso do Fico, da guerra da Independência na Bahia, Pará, Pernambuco, Cisplatina. Embora limitada às principais províncias, o movimento da Independência foi o primeiro esboço, embora precário, de um movimento nacional.”
Um dos episódios desmitificados, por exemplo, é o Grito do Ipiranga, que não surge com destaque nos panfletos e só foi mencionado pela imprensa uma vez (pelo jornal “O Espelho”, em 20 de setembro).
“Para os contemporâneos do 7 de setembro, a data não teve significado especial, pois já estava consumada com a convocação da Assembleia Constituinte, em junho de 1822 ou com os manifestos de agosto. A data mais importante era o dia 12 de outubro, dia da aclamação de D. Pedro 1”, dizem os historiadores.
Documentos
A historiadora Regina Wanderley acrescenta que o Grito, assim como o papel de Tiradentes na Inconfidência Mineira, foram construídos pela historiografia republicana no século 19. “Quando você vai aos documentos, vê que a história não foi bem assim. É importante que os historiadores não deixem de ir aos documentos. Nesse sentido, a edição desses panfletos é algo muito importante”, diz Wanderley.
Os organizadores do livro concordam. “Existe entre os historiadores hoje uma excessiva ênfase no que se chama marco teórico, mas a necessidade de recorrer a fontes, escritas ou não, é reconhecida por todos.”
O lançamento reforça, ainda, os panfletos como parte da tradição literária da época. As cartas possuem linguagem mais belicosa. Os poemas tendem ao laudatório. Os diálogos e catecismos são didáticos por excelência, enquanto os manifestos, proclamações e representações buscam efeito mais mobilizador, convidando o povo ou as autoridades à ação.
Um dos intelectuais mais produtivos do período, porém, ficou de fora da publicação. Trata-se do Visconde de Cairu (1756-1835), economista e jurista nascido na Bahia e formado em Coimbra. Foi um dos mais ativos na produção de panfletos durante o período da Corte portuguesa no Brasil e o processo de Independência.
“Cairu não foi incluído porque escreveu muito, seus textos davam sozinhos um volume. Sem dúvida merece publicação à parte, se tivermos fôlego.”
Os pesquisadores acrescentam que ainda há boa parte da produção espalhada pelos Estados, onde a conservação de documentos não é das melhores, como o Maranhão.
“Muitos se perderam. Nossa pesquisa foi cuidadosa, mas outros panfletos continuam a aparecer, sobretudo em bibliotecas portuguesas. Já temos material para um novo volume. Com a publicação dos panfletos, que se encontram dispersos em várias instituições do Brasil e de Portugal, os pesquisadores terão seu trabalho enormemente facilitado”, acrescentam.
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Sylvia Colombo, da Folha de S.Paulo