Na longa e deliciosa entrevista com Carlos Heitor Cony, da série Dossiê Globo News, exibida no canal a cabo GloboNews, a crucial e atualíssima questão do suicídio a certa altura surge, se não de modo a explicar e muito menos justificar um gesto tão extremo, lançar alguma luz nos meandros mentais que levam alguém a dar cabo da própria vida. E ultimamente, arrastando consigo pencas de inocentes, sacrificadas aleatoriamente por razões que a própria razão desconhece.
Indagado sobre os motivos que o levaram, insolitamente, a questionar numa entrevista coletiva do escritor francês Jean-Paul Sartre, do porquê de não ter se suicidado aos 35 anos, Cony citou a própria saga autodestrutiva do personagem Mathieu, assumido alter ego do autor naquela que é considerada sua obra-prima, A Idade da Razão, para ilustrar a suprema desilusão que revela o consagrado prêmio Nobel de Literatura com os rumos não só de sua vida, como com a obra que deu origem ao existencialismo.
Obviamente, Cony não estava cobrando o suicídio físico do autor, e sim sugerindo que diante da desilusão e do esgotamento das possibilidades do personagem de ser feliz, que embutem o próprio fracasso das teses que embasaram sua obra, se melhor não teria sido um desfecho mais pungente, de repente até abdicar de continuar escrevendo. Ainda mais quando o personagem central acaba a trama literalmente de calças arriadas, numa demonstração cabal de impotência e resignação diante de eventos imperscrutáveis e de força maior. Questionamento sem dúvida radical e atrevido, mas peculiar ao escritor, ensaísta e cronista corajoso e polemista que Cony sempre foi, e “café pequeno”, lembrou com um sorriso maroto, para quem chegou a chamar de maluco, num de seus candentes artigos, um dos generais que viriam a assumir a presidência nos anos de chumbo.
“Não tenho nada a defender, não me envaideço de minha vida. Minha liberdade me pesa. Morro de vontade de trocá-la por uma convicção. Tenho a necessidade de me esquecer um pouco de mim mesmo. E depois, penso como você que não se é homem enquanto não se encontra alguma coisa pela qual se está disposto a morrer”, conclui o atormentado Mathieu, dando vazão a um sentimento possivelmente familiar e indutor ao crescente culto ao suicídio, que se dissemina nesses tempos de banalização da morte e da violência.
Haraquiri de reputações
Versão ocidentalizada das bombas humanas que aterrorizam os povos muçulmanos, a imolação bárbara e injustificável dos 150 ocupantes do Airbus derrubado pelo copiloto alemão é um exemplo cabal de nossa vulnerabilidade e impotência diante de uma praga talvez ainda maior que o fanatismo que desvirtua o islamismo: a enorme e disforme legião de psicopatas e sociopatas imiscuídas mesmo nas nações e sociedades mais avançadas. Nas quais, paradoxalmente, cada vez mais salientes, não só em frequentes ações isoladas de franco-atiradores e atentados pontuais como na crescente adesão de jovens ocidentais às fileiras do homicida Estado Islâmico.
Flagelo do qual felizmente estamos livres, pode estar pensando o prezado leitor. Ledo engano. Se de fato temos a sorte de até agora, não conviver com bombas, atentados e ataques que chocam pela frieza e crueldade, nossa versão de suicidas é mais pragmática e sutil, não implica em morte física. Nossos virtuais suicidas – afora os enjaulados pela Operação Lava Jato – geralmente gozam de boa saúde, principalmente financeira, e não estão nem aí para o haraquiri de nomes e reputações decorrente da roubalheira e malfeitos que protagonizam, e que felizmente estão sendo pouco a pouco desbaratados. No que, diga-se de passagem, destaque-se o extraordinário trabalho do Ministério Público e da Policia Federal na caça às ilicitudes que impregnam nossa sociedade, e nos quais as pessoas de bem depositam suas derradeiras esperanças de que o país possa sair do lodaçal em que se encontra.
Reféns de um mundo pródigo em produzir os maiores absurdos e barbaridades, como o transloucado gesto desse copiloto alemão do qual ninguém suspeitava o grau de insanidade, ao que tudo indica, pelo mero desejo de chamar a atenção, nada mais natural que as pessoas andem tão impacientes e revoltadas. Ainda mais sentindo na pele os efeitos funestos das ações e medidas desastradas que o governo Dilma Rousseff vem acumulando, a ponto de gerar a desconfiança de que nem seja mais possível reverter a situação, diante de indicadores que apontam para uma deterioração ainda maior da economia, que como se sabe, é o calcanhar de Aquiles de qualquer governo.
Incandescência que a imprensa se esmerou em incrementar nos últimos dias, reproduzindo e interpretando os fatos no diapasão que as circunstâncias e conveniências exigem. No que se insere, obviamente, um quadro de crise institucional que nem o próprio governo se anima a contestar, esgotada a larga cota de falsas promessas e engodos eleitoreiros que garantiram a reeleição de Dilma. Um inferno astral tão grande que mesmo as boas intenções, como a escolha de Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda e a carta branca dada a ele para implementar seu draconiano ajuste fiscal, se configura um ônus político para muitos insustentável.
Desgraça pouca
É voz corrente na imprensa que antes de melhorar, a situação tende a piorar, corroborando, aliás, previsão feita semanas atrás pelo conceituado Financial Times. O que deixa no ar a dúvida cruel se Dilma terá fôlego para aguentar o repuxo. Afinal, com índices de popularidade beirando os que decretaram o impeachment de Fernando Collor de Melo, o diabo é que a cota de notícias ruins parece longe de se esgotar, devidamente turbinadas pela blitzbrieg midiática e sintomático fogo amigo do PMDB. Ambos, numa clara e nefanda aliança para apear Dilma e o PT do poder.
Não bastasse o sistemático bombardeio dando conta dos desdobramentos da Operação Lava Jato, cada vez mais próximo de provar definitivamente o envolvimento do PT no esquema, a divulgação na semana passada de que o crescimento do PIB em 2014 foi de ínfimos 0,1%, confirmando a estagnação da economia, nos últimos dias levou a grande imprensa, com o estardalhaço previsível, a deslocar suas baterias para o setor econômico. Com o quadro saindo de recessão para estagnação com inflação, ficou mais fácil do que roubar doce de criança a tarefa de defenestrar o próprio programa de ajuste fiscal, tido e havido como indispensável para sanear as contas públicas.
Como desgraça pouca é bobagem, a semana trouxe também novos dissabores e preocupações de ordem funcional, com a demissão do ministro Thomas Traumann por conta do vazamento do desastrado relatório interno criticando a estratégia de comunicação governamental. O que abriu vaga para a nomeação do deputado petista Edinho Silva – ex-tesoureiro de sua campanha eleitoral –, interpretado como um constrangedor afago ao partido, e em particular ao ex-presidente Lula, cuja súbita discrição, por sinal, tem sido visto como um sinal de desagrado com as mancadas de sua pupila. Razão do convite extensivo ao filósofo e professor Renato Janine Ribeiro para o Ministério da Educação, outra concessão a legenda, não obstante recentes entrevistas em que aponta problemas de governabilidade, como a falta de diálogo e dicotomia entre discurso e ações.
Lição de casa
Menos mal que ao menos até o final da semana, nomes governistas e/ou petistas não tenham aparecido nas denúncias de participação de outro colossal esquema de corrupção que começa a vir à tona, mais uma vez, graças a eficiência da dobradinha PF e MP. Desta vez envolvendo, pasmem, altos funcionários da Receita Federal, que teriam mexido os pauzinhos para apagar débitos de uma imensa leva de empresas e instituições financeiras. Ainda em fase inicial, a Operação Zelotes estima que os valores subtraídos possam passar de R$ 20 bilhões de reais, e entre os supostos envolvidos estão peso pesados de nossa economia, que vão desde grupos como a Gerdau, a Camargo Correia, a Light, e como não poderia deixar de ser, a Petrobrás, a bancos como o Santander, Bradesco, Safra e Itaú, e pelo menos uma empresa de comunicação, a RBS, afiliada da Rede Globo sediada no Rio Grande do Sul.
Para quem normalmente torce o nariz para a política de dois pesos e duas medidas normalmente adotada pelos grandes veículos de informação, louve-se o destaque e o minucioso material publicado na edição de sábado (28/3) do Estado de S.Paulo. Um exemplo cabal de que quando quer, quando não se curva a interesses subjacentes e corporativistas, nossa imprensa ainda não desaprendeu fazer a lição de casa.
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Ivan Berger é jornalista