Notícias são como leis, algumas pegam, outras não. Dependem do destaque nos meios de comunicação, mas também do interesse da opinião pública. Quando ambos se casam, cascateiam reportagens em série, continuações. Nem sempre, porém, o assunto é socialmente relevante. Outras vezes, o relevante não é interessante. O bom editor é um malabarista que equilibra o interesse público com o interesse do público.
Atropelamentos dramáticos ocorridos em São Paulo nos últimos meses provocaram grande repercussão na mídia e a chamada “comoção do público”. As vítimas caminhavam inocentemente por calçadas de bairros de classe média alta quando foram esmagadas por carros de luxo em alta velocidade. Invariavelmente, a polícia levantou a possibilidade de os motoristas estarem embriagados.
Notícia? A audiência prova que sim. Novidade? Somente por causa do local onde as pessoas morreram.
As circunstâncias que levaram à morte desses pedestres vitimaram 576 paulistanos em 2010. É um número menor que o de 2009, que é inferior ao de 2008, e assim por diante até 2005 – o ano do pico de atropelamentos de moradores de São Paulo ocorridos na própria cidade. Nos últimos cinco anos, as mortes de pedestres paulistanos caíram 18%, apesar de a população e, mais importante, a frota de veículos terem aumentado. Ainda morrem três pedestres a cada dois dias, mas a tendência é de queda. O mesmo acontece na média do Brasil.
Onde moram as vítimas mais frequentes de atropelamentos fatais? Em bairros pobres e periféricos.
Os campeões de mortes de pedestres em 2010 foram Jardim São Luís (19 moradores mortos), Grajaú (18) e Capão Redondo (15), todos na distante zona sul paulistana. No mesmo ano, bairros mais afluentes, como Higienópolis, Morumbi e Jardins registraram apenas um morador morto por atropelamento. Outros, como Moema e Alto de Pinheiros, nenhum.
Mesmo descontando-se a diferença do tamanho da população entre bairros ricos e pobres, o risco de um morador do Jardim São Luís morrer atropelado em São Paulo é 7 vezes maior do que o de um morador do Jardim Paulista. Logo, pela cruel definição de notícia (é a exceção, não a regra), quando o morador do Jardim Paulista morre atropelado ele tem muito mais chances de aparecer no jornal e na TV.
O problema é quando se resolve elaborar políticas públicas a partir de notícias de jornal. Nem sempre a ênfase do noticiário acompanha tendências cientificamente verificadas. Seus critérios, que levam em conta obrigatoriamente o interesse da audiência, não são os mesmos dos epidemiologistas.
Após o noticiário sobre atropelamentos notáveis, a prefeitura paulistana diminuiu a velocidade máxima nas vias centrais, e o Ministério da Saúde lançou uma campanha contra beber e dirigir. No passado, controle de velocidade, obrigatoriedade do cinto de segurança e medidas punitivas contra motoristas embriagados já mostraram resultados positivos na redução do número de mortes no trânsito.
Mas a mais recente epidemia de mortes violentas em curso no Brasil tem muito pouco a ver com isso. O que fez disparar o número de mortes no trânsito na década passada foi a explosão da frota de veículos de duas rodas. A quantidade de motocicletas e motonetas aumentou quatro vezes desde 2000. E, não por coincidência, o número de mortes de motociclistas aumentou também quatro vezes. Se recuarmos mais no tempo, as cifras são ainda mais impressionantes.
Desde 1996, as mortes de motociclistas cresceram 1.298% no Brasil. Enquanto isso, a mortes por atropelamento caíram 30%. As mortes de ocupantes de automóveis também aumentaram, mas em uma velocidade muito mais baixa do que as de motoqueiros. Desde o ano passado, as motos matam mais gente (10.134) do que morrem pessoas dentro de carros (8.659) e atropeladas no Brasil (9.078). Somados todos os motociclistas mortos desde 2000, o resultado equivale ao de soldados que os EUA perderam no Vietnã: 68.136.
No entanto, essa epidemia não virou notícia. Por duas razões. Nas cidades grandes, as mortes de motoboys se tornaram tão corriqueiras que há muito deixaram de provocar manchetes. E no lugar onde as motos começaram a fazer mais vítimas nos últimos anos, as pequenas cidades do interior do Brasil, elas ocorrem de modo tão espalhado que não chocam.
De um modo tragicamente irônico, foi o aumento da renda e a facilidade de crédito que permitiram a troca do jegue, do cavalo e da bicicleta pela moto no Brasil profundo. Há uma relação direta entre tamanho da frota de duas rodas e vitimização. Mais motos equivalem a mais mortes. Obviamente, não há política pública contra o avanço do consumo.