Opinião, sediado no Rio de Janeiro, foi, para mim, a mais importante (e a melhor) publicação da imprensa alternativa brasileira republicana. A partir do seu primeiro número, que foi às bancas na primeira semana de novembro de 1972, o jornal – de 24 páginas, em formato tabloide – foi subindo como um foguete. Surpreendidos por sua qualidade, os leitores que queriam ficar mais bem informados, mesmo no auge da ditadura militar, corriam para as bancas atrás de Opinião.
Em pouco tempo a sua tiragem começou a se aproximar de Veja (em circulação desde 1968), que, para surpresa geral, se tornou sua competidora direta. Era como se o Gavião Parakatejê se tivesse tornado páreo duro para o São Paulo. Nessa progressão, o semanário alternativo emparelharia e talvez viesse a passar à frente da revista dos Civita, a um custo infinitamente menor.
Nunca qualquer publicação alternativa chegou a esse ponto – nem antes nem depois. Qual o segredo de Opinião? Em primeiro lugar, ser feito por jornalistas profissionais e não por militantes políticos. Jornalistas comprometidos com seu ofício, de encontrar a verdade (ou sua reconstituição mais fiel) e apregoá-la para a sociedade, assumindo todos os riscos dessa opção.
Todos os integrantes do jornal eram remunerados, graças ao caixa do empresário Fernando Gasparian, o mecenas do empreendimento, mas ganhavam pouco proporcionalmente às suas habilidades ou biografias. Alguns tinham um pé no pequeno semanário e outro num veículo da grande imprensa. Não só para manter a si e à família: carreavam para o jornal pobre as informações que só podiam ser obtidas com investimentos, aos quais uma publicação como Opinião jamais teria acesso.
Quando todos estavam felizes e empolgados pelo sucesso do jornal, a censura começou a agir. Inicialmente levada pelo compromisso ideológico de sufocar as verdades incômodas. Quando, mesmo assim, o jornal resistia, graças à fidelidade do seu leitor, a censura se transformou numa sabotagem explícita. O que ela queria era acabar com aquele jornal inconformado e resistente. Aos poucos, os cortes brutais feitos pelos censores começaram a descaracterizar e empobrecer o leitor. Não valia mais a pena pagar para tê-lo. Opinião já só publicava o que a censura deixava. E o que ela aceitava era o irrelevante. O jornal acabou, não sem antes passar por uma crise interna que o cindiu e transformou-o de órgão de informação e análise de conjuntura em uma publicação de ensaios – de bom nível, mas apenas para um público mais reduzido.
Fui colaborador ativo de Opinião a partir da minha base, em São Paulo, na redação de O Estado de S. Paulo. Com matérias com ou sem assinatura, às vezes mais de uma por edição. Outro dia, revendo a coleção, fiz uma descoberta: um dos meus artigos foi o primeiro a apresentar os sinais da tesoura do censor.
Censura e Amazônia
Foi na 20ª edição, de 19 a 26 de março de 1973, quando o general Garrastazu Médici ostentava o bastão de comando da república. Três números antes, o editor do jornal, o grande Raimundo Rodrigues Pereira, escreveu matéria de página inteira, que foi a capa da edição, relatando a visita do presidente ao projeto Jari, o império do milionário americano Daniel Ludwig no Pará e Amapá.
Da sua experiência na coordenação da lendária edição especial da revista Realidade sobre a Amazônia, Raimundo extraía certa simpatia por Ludwig e entusiasmo por sua moderna empreitada capitalista na jungle. Parecia partilhar o entendimento dos que consideravam necessária a instalação desse foco de contemporaneidade numa região primitiva para que ela pudesse se desenvolver mais rapidamente e melhor. Talvez, quem sabe, no futuro, se desfazendo do guia dos novos tempos. Uma versão ortodoxa do marxismo nascido na Inglaterra superdesenvolvida ao apreciar um cenário remoto no mundo primitivo.
No seu texto, Raimundo se desincumbiu da tarefa de desfazer as críticas da esquerda, várias delas de fato improcedentes ou fantasiosas, à presença do bwana americano numa parte estratégica da foz do rio Amazonas, na saída para o vasto oceano. Uma terceira das suspeitas analisadas por Raimundo era “a acusação de ser estrangeiro e estar tentando tomar um pedaço da Amazônia”.
Nesse caso, raciocinava o editor do jornal, a defesa de Ludwig – colocada num condicional distante do autor da matéria – “poderia ser feita por seus amigos ainda como no caso dos peões [que fizeram um surpreendente protesto durante a visita de Médici contra suas condições de trabalho]: é ele o único? Perto de suas realmente vastas terras, outros estrangeiros têm áreas se não iguais pelo menos comparáveis”. E citava os exemplos, como os da Icomi, Bruynzeel, Georgia Pacific e Toymenka.
A conclusão de Raimundo era de que “todas essas terras foram – salvo talvez exceções pouco expressivas – adquiridas de acordo com a lei. Os estrangeiros, gente como Daniel Keith Ludwig, por exemplo, são talvez as que melhor a respeitem, com medo de perderem os seus favores”.
Raimundo então arrematava a argumentação: “O fato de todas essas terras formarem uma espécie de cordão de isolamento fechando a estratégica boca de saída do Rio Amazonas representa um perigo para o país? Seria correto dizer – como o falecido brigadeiro Haroldo Velloso, homem de passado pouco convincente, cujo fim de vida foi melancolicamente passado num quarto solitário em vãs batalhas políticas na cidade de Santarém [Raimundo revela desconhecimento sobre o fim de Veloso, ferido pela polícia militar do Estado durante um conflito em Santarém, vindo a morrer depois de complicações causadas pelo ferimento de sabre] – que ‘a impressão tida ao examinar (as terras estrangeiras) num mapa é a da formação de um cordão isolando a Amazônia do resto do país’? Isso talvez seja raciocinar como diria um oficial, com base na teoria conspirativa da história’”.
Concluía Raimundo a sua reportagem: “O que parece seguro é que, com uma região estratégica como essa nas mãos de grandes empresas e capitalistas internacionais como Daniel Keith Ludwig, para qualquer mudança que se queira fazer nos destinos dessa área o país não poderá optar independentemente: esses homens e empresas terão de ser ouvidos. E é difícil imaginar que Daniel Keith Ludwig, que conseguiu amealhar perto de 3 bilhões de dólares, seja um homem ingênuo”.
Não gostei de alguns dos momentos mais relevantes da matéria de Raimundo Pereira. Nossos divergentes modos de ver a Amazônia começaram a se chocar antes da conclusão da edição de Realidade. Decidi escrever a minha matéria a respeito. Como em outros momentos, tive que discutir com o editor antes que o meu texto fosse aceito. Para minha surpresa, ao ler a publicação, vi que em três trechos houve supressão do que escrevi. No lugar, pontinhos entre parênteses, além de um bloco negro com o título do jornal, também o primeiro. Foi a sinalização gráfica inaugural alertando o leitor para a intervenção da censura, que evoluiria para uma agressão aberta à integridade do conteúdo que lhe era submetido pela editoria.
Reproduzo em seguida a matéria tal como saiu em Opinião, com a participação do censor. É instrutivo observar que, além do rosto de Médici ocupando toda a capa da edição anterior do jornal, a matéria de Raimundo não foi alvo da intervenção do censor, como a minha seria. Qual podia ser a razão dessa dualidade? Naturalmente, o conteúdo do meu texto, como o leitor poderá verificar.
Por que republicá-lo agora? Porque, mais de 40 anos depois, a situação no Jari se modificou dramaticamente. A área não é mais de propriedade de um estrangeiro. O sucessor atual de Ludwig é o paulista Sérgio Amoroso. Ele tinha todos os seus investimentos no interior de São Paulo. Hoje todo seu negócio se concentra no Jari. Amoroso quitou a dívida que Ludwig se recusou a pagar entre 1981 e 1982, quando passou em frente o projeto.
A principal atividade econômica, a produção de celulose, sofreu uma transformação tecnológica, deixando de ser destinar ao setor papeleiro e se tornando insumo principalmente da indústria de tecidos. A fase de mudança tem um componente de incerteza tanto em relação ao produto quanto ao mercado. E agora há duas outras atividades em crescimento na área, que podiam ser complementares mas se tornaram antagônicas: a extração de madeira, realizada por novos (e ocultos) personagens e o manejo florestal, desenvolvido pela empresa.
A população nativa, dedicada a agricultura de subsistência e ao extrativismo, que foi reprimida e segregada na era Ludwig, agora assume papel ativo na história. A migração para o Jari se intensifica, tanto pelo ingresso de extratores e compradores de madeira como por moradores do Xingu expulsos pela construção da hidrelétrica de Belo Monte e o processo especulativo que a obra desencadeou.
Essa combinação de fatores leva a uma ameaça e uma advertência: a margem esquerda do rio Amazonas no território paraense, ainda dominada pela floresta nativa em grandes maciços, pode ter o destino de destruição semelhante ao da margem direita a partir de agora. O primeiro e decisivo lance para a definição da tendência está se constituindo no vale do rio Jari. É preciso uma urgente intervenção do poder público e o atento acompanhamento da sociedade para que esse novo capítulo não seja igual ao massacre da natureza na metade meridional do Estado.
Segue-se o texto, com os marcos gráficos das garras da censura.
OS PEÕES DEPOIS DE MISTER LUDWIG
Depois que o Presidente da República visitou a Jari Florestal e Agropecuária, o imenso projeto do bilionário norte-americano Daniel Keith Ludwig na Amazônia, em fins do mês passado, e lá assistiu a uma tímida – mas eloquente – manifestação de trabalhadores contra as condições de trabalho no projeto, investigações oficiais e outras medidas foram anunciadas com a aparente intenção de impedir a exploração dos 3.200 peões da Jari. Em vista da grande repercussão das críticas e do espanto da comitiva presidencial diante da precária situação dos trabalhadores, anunciou-se que o próprio Ludwig iria encontrar-se com Médico no princípio da semana passada, no Rio. Até o fim da semana passada, contudo, a esperada audiência não tinha acontecido, por motivos que não foram revelados.
Embora o projeto Jari seja um dos maiores empregadores de mão-de-obra na Amazônia, tudo indica que as condições de trabalho existentes ali não são muito diferentes das vigentes em dezenas de outros projetos, onde trabalha um número que pode situar-se perto de 100 mil peões, também contratados através de empreiteiros, sugestivamente conhecidos na região como “gatos”. Há também fortes razões para supor que essa situação não seja novidade nem na Jari, nem na história da conquista da Amazônia, nem para o governo. É o que mostra esta reportagem de Lúcio Flávio Pinto.
Desde que 1.500 índios remaram durante mais de um ano pesadas canoas para que o português Pedro Teixeira assombrasse o mundo com uma viagem de ida e volta Belém-Quito, em 1737, vencendo sete mil quilômetros de rios e dificuldades que separam o Pará do Peru, a história da colonização da Amazônia tem sido também a história da escravização do homem que a desbrava. Talvez por isso os comandantes da colonização de hoje, como o lendário Pedro Teixeira do século XVII, não se espantem quando novas denúncias de escravização de trabalhadores saem de redutos amazônicos pioneiros e atingem todo o país. Foi o que aconteceu há três semanas, quando o presidente da República se confessou espantado com as condições de vida dos peões que trabalham no projeto Jari e que realizaram, diante da comitiva presidencial, um patético e quase desesperado protesto.
De fato, esse episódio pode ter sido a culminação de outras indignações, mas nunca a primeira, provavelmente não a última. Há mais de cinco anos, tímidas denúncias têm procurado demonstrar que, se o modo de ocupar a região mudou muito, as relações de trabalho permaneceram as mesmas.
As denúncias foram se avolumando tanto que obrigaram o Ministério do Trabalho a enviar à Amazônia o próprio diretor do Departamento Nacional de Mão-de-Obra, Rômulo Marinho, em abril do ano passado. A visita de Marinho espantou as dezenas de inquéritos que estavam arquivados na Secretaria de Segurança Pública do Pará e na delegacia da Polícia Federal (na delegacia do Ministério do Trabalho não havia nenhum). Ao chegar a Belém, dizendo-se disposto a devassar tudo para chegar à verdade, Marinho tratou logo de visitar o vale do rio Jari, de onde haviam partido as acusações mais graves, segundo o entendimento dele.
Os fatos, entretanto, foram circunscritos apenas a aspectos burocráticos. A delegacia do Trabalho em Belém descobriu que 184 carteiras foram expedidas irregularmente para trabalhadores da Jari. A questão era impedir que essas pessoas chegassem à região e descobrir o autor da fraude. Algumas horas depois de visitar as belas instalações da Jari (limpo e arejado restaurante, moderno hospital e confortáveis alojamentos – aos quais só os técnicos e o pessoal administrativo têm acesso) e conversado com os empreiteiros, Rômulo Marinho retorno a Belém anunciando nada ter constatado de irregular nas frentes de desmatamento do projeto.
Estranhamente, cancelou a segunda parte da sua missão: inspeção à tumultuada e hostil região de São Domingos do Capim, não mais ao norte, onde está a plantação de gmelina e arroz do milionário americano, mas ao sul, reduto de mais de 300 projetos agropecuários sulistas aprovados pela Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). Depois de ficar um dia sem programa em Belém, Romulo Marinho retornou a Brasília.
Os resultados da visita não podiam ir contra o itinerário percorrido. Um dia antes de voltar a Brasília, a 20 de abril, Marinho anunciou que nenhuma pessoa poderia ser contratada para os trabalhos ligados à agropecuária sem contrato assinado regularmente na carteira profissional e que todas as empreiteiras (geralmente controladas por uma só pessoa, o “gato”) que atuam na região e servem de intermediárias para os donos de projetos e os trabalhadores ficam proibidas de usar contratos particulares para empregar os braçais.
A medida visava apenas abolir um impresso que as empreiteiras usavam como “contrato de trabalho agrícola por obra certa”. Entre suas exigências mais absurdas, esse contrato fazia do trabalhador um autônomo “e sem subordinação a qualquer outro vínculo empregatício”. Sujeitava ainda o contratado à “fiscalização por parte do contratante”, obrigando o trabalhador a “refazer todos os serviços que porventura não estivessem de acordo com as normas exigidas, sem que para isso tivesse direito a qualquer remuneração”.
Os embarques de trabalhadores para a Jari, feitos através de um porto particular em Belém, começaram a ser fiscalizados por soldados da Polícia Militar e a delegacia do Trabalho enviou um fiscal para Monte Dourado, onde está a sede da empresa, a fim de verificar se todos os trabalhadores estavam com carteira profissional. A visita presidencial trouxe novas medidas básicas que pretendiam acabar com o problema: a presença do Projeto Rondon e a fiscalização através dos ministérios do Trabalho e da Saúde.
Os recursos legais
Seriam as medidas ideais? A prática parece indicar que não. A fiscalização dos trabalhadores na hora do embarque é duvidosa. (…………………..)
O fiscal do Ministério do Trabalho é um burocrata que, sediado no escritório da Jari, cuida apenas do que chega às suas mãos. Mas entre o escritório e as frentes de trabalho, a muitos quilômetros dali, tudo acontece. Para evitar o controle das autoridades e as rebeliões dos trabalhadores, as cinco empreiteiras da Jari renovam o pessoal todo a cada seis meses. Assinam as carteiras profissionais, mas o que ainda vigora são os contratos particulares. E os contratados continuam pagando a péssima comida (arroz e feijão bichados, carne seca e café) e a “assistência médica” (dada por um enfermeiro).
Mesmo quando os trabalhadores chegam até à justiça para reclamar dos salários prometidos e nunca pagos (eles passam de cinco meses a dois anos trabalhando para conseguir saldo) e é instaurado processo – como o que existe em Belém contra a maior das empreiteiras, a Serviços Florestais Ltda., movida por 300 empregados que querem uma indenização de 120 mil cruzeiros – as empreiteiras sabem que tática adotar: não comparecem às sessões. Os braçais, trazidos geralmente do Maranhão, ficam hospedados em pensões dos subúrbios, garantidos pelo dinheiro que esperam ganhar. Mas quando a questão começa a demorar, aceitam qualquer acordo para voltarem às suas terras, mais pobres do que quando delas saíram.
Se a furiosa investida das autoridades contra a Jari não tem impedido todas essas irregularidades, o que pode acontecer nas grandes e isoladas fazendas no sul do Pará? O sistema de empreitada, usado por todos os projetos agropecuários na Amazônia, tem atravessado sem arranhões todos os ataques. Os donos das fazendas alegam que nada têm a ver com os homens que derrubam as matas e fazem as plantações. Os empreiteiros estão inteiramente à margem de toda a legislação e mesmo das inspeções diretas das autoridades.
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A Polícia Federal instaurou inquérito por causa das denúncias de seis trabalhadores que, se apossando de uma das embarcações que fazem o transporte entre Belém e a Jari, conseguiram fugir dali.
Tudo como antigamente
Os outros fazendeiros desmentem a escravização de trabalhadores em suas terras, dizendo que a própria Sudam faz fiscalizações periódicas nelas. Mas é difícil acreditar na seriedade dessas fiscalizações. Os funcionários da Sudam são transportados em aviões particulares das fazendas, acertam antecipadamente o dia em que irão fazer a fiscalização e até são recebidos com almoço. Às vezes se recusam a sair da sede da fazenda e voltam imediatamente após o almoço.
Segundo o ex-secretário-geral do órgão, Manoel Reis, “os técnicos na inspeção direta observam os dados relativos à contabilidade, à organização, controle e implantação do projeto”. O secretário reconhecia que a fiscalização “tem preocupação maior pela parte financeira e operacional”, mas se defendia com a alegação de que as equipes técnicas da Sudam “nunca constataram irregularidades empregatícias que atingissem as proporções de impor um regime de escravatura ou exploração ao trabalhador”.
O difícil é saber o que a Sudam entende por trabalho escravo. O mesmo Manoel Reis dizia que a Sudam nunca recebeu uma denúncia direta “e o que sabemos é através da imprensa”. O que não faltaram foram oportunidades para começar a se preocupar um pouco mais com os problemas sociais criados pelos projetos que aprova com tanta rapidez e tão pouco rigor (a ponto de reconhecer que 99% das terras do Pará estão com títulos de propriedade ilegais, embora até hoje nenhum dos órgãos encarregados do problema – Sudam, Incra e Secretaria de Agricultura – tenha feito um cadastramento. A própria Sudam tem aprovado projetos cujos títulos de terras estavam ilegais e tiveram que ser reformulados em plena implantação.
Em junho do ano passado, três homens conseguiram fugir de uma fazenda em Conceição do Araguaia, onde trabalham seis meses sem pagamento e na qual eram vigiados por pistoleiros armados, que fiscalizavam as saídas. Os três conseguiram fugir porque, doentes, foram levados para um hospital em Conceição. “Lá, pedimos ajuda da polícia, mas ela não fez nada, dizendo que não queria encrencas. Resolvemos fugir num caminhão pela Belém-Brasília”, relatou um dos trabalhadores, Malaquias Abimael da Silva.
Logo depois, mais seis trabalhadores fugiram da Fazenda Jabuti, em São Domingos do Capim, apavorados com o capataz, que matou um dos peões quando ele tentava fugir, e o enfermeiro, que aplicava injeções para “amansar” os rebeldes. Em julho, outros cinco braçais conseguiram fugir da Fazenda Reunida, em Ipixuna, e procuraram o major Hércules Silva, delegado do Interior, pedindo garantias contra as ameaças de morte e maus tratos pelo capataz, conhecido como Zezinho (Zezinho é também o nome do dono).
As fugas de trabalhadores e aberturas de inquéritos passaram a fazer parte da rotina. Até hoje, apenas os padres da região têm recusado as justificativas dos fazendeiros e tentado verificar no local a verdadeira situação. Mas, à exceção do bispo de São Félix do Araguaia, d. Pedro Casaldáliga, os outros preferem que suas investigações não cheguem à imprensa.
(……………………………………) novos trabalhadores conseguiram fugir da Fazenda Alacid, em São Domingos do Capim, depois de travarem tiroteio com os funcionários, Francisco Pereira do Vale, um dos 39 maranhenses levados para a propriedade, contou que seu irmão já trabalhava ali havia bastante tempo, sob a vigilância de homens armados, sem receber dinheiro, quando eles chegaram. “O Raimundo, quando nos viu chegar, contou o que aconteceu. Meus companheiros disseram que iam voltar imediatamente. Tentei acalmar o pessoal porque havia empatado 500 cruzeiros para servir aos peões e precisava recuperá-los. Desci para tentar um entendimento, quando alguém atirou da margem do rio. Muitos trabalhadores procuraram se refugiar no barco e outros correram por terra. Com meu irmão e mais oito, invadimos o mato. Viajamos dias e noites e resolvemos nos separar para conseguir caça. No dia 3 (de fevereiro) avistamos um barco e fizemos sinais para ele. Mas dentro tinha uma turma da fazenda. Tentei conversar com o topógrafo Francisco de Almeida em busca de entendimento. Foi quando saltou do barco o capataz Ferreirão e começou a atirar. Meu irmão foi logo baleado e fugimos. Não sei se meu irmão morreu”.
Os fazendeiros acham que a empreitada é o único sistema de trabalho para uma região pioneira como a Amazônia. O representante geral da Jari no Brasil, Antonio Marinho Nunes, acha mesmo que os trabalhadores gostam desse sistema: “A prova disso é que os nossos colonos contratados durante o período de desmatamento retornam no ano seguinte para realizar um novo trabalho e, normalmente, trazem consigo parentes e amigos”. O que ele esquece é que esses trabalhadores são recrutados numa das áreas mais pobres e miseráveis do país: às margens da Belém-Brasília e da Pará-Maranhão.
Durante a época da exploração intensiva da borracha, que transformou a Amazônia num Eldorado mundial (1870-1910) foram trazidos entre 300 mil e 500 mil nordestinos. Metade deles morreu nos seringais enquanto sonhava com os ricos salários prometidos. Eles trabalhavam 15 horas por dia apenas para comer feijão e arroz bichados, carne seca e café, e morriam de malária, beribéri ou flechados por índios. O sistema de trabalho era o mesmo adotado atualmente: a empreitada.
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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)