Wednesday, 13 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

A apresentadora e a versão do morto

Talvez não dê em nada, pois o morto, Marcelo Vieira, não poderá desfrutar de qualquer benefício material que possa se originar na ação civil que sua família moverá contra a apresentadora Ana Maria Braga e a Rede Globo; contudo, pode ser que a partir desse episódio – a separação do ex-capitão e Suzana Vieira – algumas constatações venham à tona e sirvam para mudar a agenda dos itens televisivos que levam ‘entretenimento’ a milhões de brasileiros.

Traição, troca de marido e mulher em tempo recorde (sem trocadilho com a emissora concorrente) são temas banais e obrigatórios nas novelas da Rede Globo e fora das novelas, entre os ‘artistas’, esse fato também é corriqueiro na maioria dos casos.

As revistas e sites de ‘celebridades’ vivem à custa das fofocas envolvendo a vida pessoal das ‘estrelas’; vira e mexe, um astro se mexe e se vira com outra que não seja sua atual mulher, trocando-a por outra como troca de camisa (e isso se aplica às mulheres com igual freqüência); porém, como diria o presidente Lula, nunca na história da Rede Globo um apresentador se utilizou do horário para chamar qualquer desses ‘astros’ de vagabundo, mau-caráter e cafajeste, como fez Ana Maria Braga no seu Mais Você (24/11) logo após vir a público a separação dos Vieira, Marcelo e Suzana.

Juízes da consciência alheia

Culminando suas ofensas grossas e injustificáveis ao ex-capitão, Ana Maria Braga afirmou que seria um fato maravilhoso que ele sumisse da terra, um eufemismo peculiar aos que gostam de dizer a alguém: ‘Morra!’

A primeira constatação a partir desse fato é que existe um sentimento de superioridade na classe artística que leva alguns artistas a se sentirem, de fato, deuses em relação aos seres comuns. São uma classe especial, a cujo ego e excentricidades todos devem se sujeitar, aliás, cultuar, cultivar e financiar, na medida em que são essas pessoas comuns que pagam o salário desses artistas cada vez que vão às compras adquirir os produtos que patrocinam as novelas e produtos televisivos idiotizantes. Somos idiotas na medida em que gostamos de assistir, de nos entreter com programas que servem exatamente para esse fim, não adicionando à nossa leitura da realidade uma vírgula, uma reticenciazinha sequer…

Como conseqüência dessa primeira constatação, a outra é que muitos artistas (e nessa categoria incluo os apresentadores de programa de auditório, programas matutinos etc.) acham-se acima do bem e do mal, assumindo uma postura arrogante diante de determinadas situações, como se o fato de serem donos das manhãs, tardes e noites nas TVs lhes atribuísse a condição de juízes da consciência alheia, julgando e condenando em nome de milhões de estúpidos sentados nos sofás, tomando coca-cola e comendo sanduíches da Mc´Donald.

O respeito à pessoa humana

Uma outra constatação é que esses ‘astros’ das TVs não admitem intrusos em seu meio, numa demonstração clássica do corporativismo de espécie. Como admitir que um ex-policial, um reles e mortal anônimo, que teve a sorte de se casar com uma deusa da televisão, tenha o despautério de se julgar no direito de se comportar como se fosse um artista? Sim, porque isso se deduz da indignação de Ana Maria Braga – adultério, traições e outros assuntos correlatos são exclusivos da classe artística. Quem é (era) esse Marcelo? Para Ana Maria Braga, um pilantra que se aproveitou da carência de uma ingênua artista, como Suzana Vieira.

Que esse processo – eu espero que a família não desista de movê-lo – suscite, por menor que seja, a lição de que, ao contrário do que pensam os donos de TVs, aqueles que usam uma concessão pública para levar à população ‘qualidade e entretenimento’ não estão acima do princípio básico de qualquer meio de comunicação: o respeito à pessoa humana, o direito à ampla defesa e ao contraditório, elementos absurdamente negados ao ex-capitão Marcelo Vieira, que agora, morto, jamais poderá contar aos brasileiros a sua versão dos fatos.

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Professor, Belém, PA